Enquanto o cinema costuma representar viagens aéreas transatlânticas como entediantes intervalos entre destinos emocionantes, “Sem Escalas” subverte essa perspectiva trivial ao converter a cabine apertada de um Boeing 767 em um ambiente saturado por ansiedade, tensão psicológica e suspeitas incessantes. Sob a direção hábil de Jaume Collet-Serra, especialista em manipular claustrofobia cinematográfica, o longa transpõe para o contexto contemporâneo uma lógica narrativa herdada dos clássicos policiais de Agatha Christie, em que todos são suspeitos, ninguém é plenamente confiável, e as verdades são reveladas lentamente por meio de pistas discretas e diálogos minimalistas.
No epicentro dessa trama inquietante encontra-se o agente federal Bill Marks, interpretado com notável destreza por Liam Neeson. Mais do que encarnar um herói genérico com soluções previsíveis, Marks representa um arquétipo de humanidade imperfeita e vulnerável, personificando um tipo muito específico de coragem – aquela que é forjada no conflito entre vícios pessoais, arrependimentos profundos e uma ética de ação inabalável. É um personagem cujas fragilidades não só aprofundam a experiência dramática como tornam ainda mais intrigante a busca pelo verdadeiro antagonista. Neeson, afastando-se das glórias dramáticas do passado, apresenta-se aqui como um ator capaz de traduzir simultaneamente violência física e sutilezas emocionais com intensidade rara.
O roteiro propõe uma situação inquietante: ameaças anônimas, por meio de mensagens digitais, prometem ceifar uma vida a cada vinte minutos, caso uma alta soma de dinheiro não seja entregue. Este detalhe aparentemente simples é, na verdade, profundamente representativo da contemporaneidade, explorando como a comunicação digital — imediata, invasiva e imprevisível — pode gerar pânico e paranoia em espaços fechados. Embora à primeira vista a exposição dessas mensagens em tela possa incomodar espectadores acostumados com narrativas tradicionais, esse recurso é absolutamente estratégico. O texto não somente substitui diálogos longos e redundantes como intensifica a sensação de urgência e aprisionamento psicológico, demonstrando como tecnologias cotidianas podem se tornar instrumentos poderosos na construção do suspense.
A riqueza narrativa do filme também é sustentada por um elenco de apoio cuidadosamente escolhido, que transcende os limites tradicionais das participações secundárias. Julianne Moore personifica uma empresária cuja aparente leveza camufla intenções ambíguas, enquanto Michelle Dockery traz credibilidade ao papel de uma comissária dividida entre o profissionalismo e a tensão crescente. Mesmo nomes menos explorados no roteiro, como Lupita Nyong’o e Corey Stoll, adicionam nuances essenciais ao clima de suspeição generalizada. Este método, reminiscentes de clássicos como “Aeroporto” e dos mistérios de “Assassinato no Expresso do Oriente”, fornece uma experiência de identificação múltipla, permitindo que o público alterne entre dúvidas e certezas sobre a inocência ou culpa dos passageiros.
Contudo, apesar de estabelecer com eficácia uma narrativa que sustenta tensão prolongada, “Sem Escalas” demonstra fragilidades notórias ao alcançar sua conclusão. O terceiro ato tropeça ao revelar as motivações do antagonista, com justificativas que flertam perigosamente com a superficialidade narrativa. Todavia, é exatamente nesse deslize que se torna possível perceber a autoconsciência do filme: a trama reconhece implicitamente seus próprios exageros e os utiliza para maximizar o entretenimento, apelando à suspensão voluntária da incredulidade. Essa abordagem, embora arriscada, funciona em boa parte graças à segurança com que Neeson domina a tela e conduz o espectador pela mão, garantindo que mesmo as inconsistências mais notórias sejam toleradas diante do impacto emocional e da adrenalina das cenas finais.
Além das camadas mais explícitas, “Sem Escalas” também carrega discretas, porém incisivas, observações sobre a sociedade contemporânea, especialmente no tocante à fragilidade das instituições e à facilidade com que suspeitas podem ser amplificadas pelo medo generalizado. O protagonista, rapidamente transformado de protetor em potencial sequestrador pela opinião pública, reflete um fenômeno moderno: a rapidez implacável com que julgamentos sumários ocorrem, especialmente quando envolvem contextos pós-11 de setembro, onde qualquer ação incomum é imediatamente vista sob a ótica da ameaça terrorista. Assim, o filme sugere, sutilmente, que a verdadeira ameaça talvez não venha apenas de inimigos declarados, mas também das narrativas que construímos coletivamente em momentos de crise.
O resultado é uma experiência cinematográfica que se sustenta não apenas pela adrenalina imediata, mas por sua capacidade de estimular questionamentos posteriores sobre vulnerabilidade, confiança e o estado de vigilância constante que caracteriza nosso tempo. Mesmo que não pretenda revolucionar o gênero ou se tornar um marco histórico do cinema, “Sem Escalas” realiza algo significativo: convida o espectador a refletir, ainda que brevemente, sobre as fronteiras tênues entre segurança e paranoia, verdade e percepção pública, entretenimento e realidade. É essa dimensão adicional, discretamente inserida em uma narrativa aparentemente convencional, que transforma o filme em algo mais do que apenas entretenimento passageiro, imprimindo-lhe um valor simbólico e crítico que ressoa muito depois que os créditos finais são exibidos.
★★★★★★★★★★