O filme que teria espaço reservado na biblioteca secreta de Agatha Christie acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

O filme que teria espaço reservado na biblioteca secreta de Agatha Christie acaba de estrear na Netflix

Casamentos podem ser a oportunidade perfeita para que se unam não duas pessoas que trocam juras de amor eterno que não resistem às luzes esmaecidas da alvorada, mas paranoias de vidas fraturadas em alguma curva imprecisa do caminho, e por uma razão compartilhada só pelos dois, são justamente essas suas debilidades que fazem com que o erro imperdoável da união transforme-se numa relação que surpreende pela lealdade com que os cônjuges enxergam-se um ao outro.

Filhos podem ser a oportunidade perfeita para que um homem e uma mulher confirmem ao mundo que sua vontade de serem felizes para sempre pode não parecer assim tão delirante. Demora, mas “Pequena Sibéria” chega ao cerne do que deseja abordar, as escolhas, que de uma forma ou de outra, sempre pautam a vida do homem. O finlandês Dome Karukoski adapta o romance homônimo de Antti Tuomainen, de 2019, de modo a destacar o absurdo da vida, materializado num corpo celeste que descola-se do espaço e se precipita sobre Hurmevaara, “a terra dos encantos”, que experimenta uma fase sombria depois da inesperada visita.

Nosso destino está subordinado ao que fazemos do agora, condição essencial para compreender — e aceitar — o porvir. Mas e quando o destino coloca-nos contra a parede e despeja sobre nós toda sorte de provações, quase todas tão absurdas em suas exigências que terminamos apenas por baixar a cabeça e aceitar seus desmandos? Joel, um pastor e veterano da Guerra do Afeganistão (2001-2021), parece fazer uma viagem cósmica de catorze bilhões de anos, aproveitando seu curto intervalo entre nascer e morrer, durante o qual persegue respostas para questões as mais complexas, as mais incômodas, sabendo que não irá encontrá-las — ou, pior, pensará tê-las encontrado, até que, muito tempo depois, terá de admitir que equivocou-se.

Quando se dá conta de que será ele o responsável por cuidar da pedra espacial, fatos estranhos derramam-se sobre sua vidinha ordinário, a começar pela gravidez da esposa, Krista, uma professora de dança que mudara-se com o marido para aquele cafundó. O diretor e a corroteirista Minna Panjanen deixam no ar se há ou não alguma ilicitude na vinda dessa criança ao mundo, uma vez que Joel ficara estéril depois que estilhaços de uma bomba atingiram seus testículos, e os personagens de Eero Ritala e Malla Malmivaara travam uma guerra, ora silenciosa, ora colérica até que o mistério seja esclarecido. Enquanto isso não acontece, Karukoski desenvolve a trama do meteorito, ainda que a essência de seu filme esteja mesmo nos conflitos de um casal que se ama, mas que padece de uma grave crise de valores. Uma metáfora bastante sofisticada sobre as relações humanas entre gente que partilha os lençóis ou não.

Filme: Pequena Sibéria
Diretor: Dome Karukoski
Ano: 2025
Gênero: Comédia/Drama
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.