Na Netflix: gravada em apenas 5 dias e sem cortes, a série que se tornou fenômeno mundial e já é apontada como a melhor de 2025 Divulgação / Netflix

Na Netflix: gravada em apenas 5 dias e sem cortes, a série que se tornou fenômeno mundial e já é apontada como a melhor de 2025

“Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Assim o grande escritor carioca Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) encerra uma de suas melhores obras, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). A humanidade nunca valeu grande coisa para muitos, percepção que se agudiza ainda em tempos de situações extremas como os que temos vivido. Há quem diga que não existe a menor hipótese de uma família estar completa sem filhos, os adoráveis monstros descritos por Vinicius de Moraes (1913-1980) em seu “Poema Enjoadinho” (1953), que de fato podem fazer deste globo azul pendurado no infinito um lugarzinho menos caótico, menos triste, menos ordinário, mas… e se for justamente o oposto? 

Se pais de um amor extremado, que que se sacrificam, certos de que têm a genuína obrigação de oferecer a seus rebentos todas as oportunidades de que possam desfrutar, dão à luz Sardanápalos, Neros, Hitlers, Suzanes, facínoras egocêntricos que põem fogo no mundo, em qualquer um que pareça-lhes diferente e acabem por dilacerar o crânio de quem os alimenta? Sempre tive pânico de que acontecesse comigo o que se assiste em “Adolescência”, a nova série da Netflix sobre a qual todos estão falando, com certo exagero — já chego lá. Não saberia jamais educar uma criança; não saberia jamais identificar quando poderia estar sendo compreensivo demais ou rigoroso em excesso. Não sobreviveria à morte de um filho. Talvez matasse com minhas próprias mãos um filho delinquente.

Aquela parecia mais uma manhã serena em Yorkshire, condado histórico no norte da Inglaterra, uma das tantas joias do Medievo. O detetive Luke Bascombe recebe um telefonema do departamento de polícia que o autoriza a entrar, com o reforço da tropa da elite, na casa dos Miller, uma família de classe média de pai, mãe e dois filhos, e apreender Jamie, o caçula, pelo assassinato de uma colega de classe. A partir daí, os showrunners Jack Thorne e Stephen Graham começam um thriller progressivamente assustador, dirigido por Philip Barantini de modo a desautorizar conclusões precipitadas e esperar até o derradeiro lance do quarto e último capítulo para saber o que pensar. Enquanto esse momento não chega, Barantini abusa de maneirismos técnicos como a tomada única a fim de não perder nenhuma das expressões dos atores, e a essa altura ninguém cogita interrompê-los, nem o diretor nem nós. 

Numa sala sem paredes, Bascombe, uma mistura bem-dosada de emoção e frieza na brilhante interpretação de Ashley Walters, enumera perguntas ao acusado, um garoto de treze anos, magricela, pálido, nervoso, depois de uma revista íntima à cata de vestígios de luta corporal e coleta de sangue. Jamie nega tudo, responde “sem comentários” às indagações que podem encrencá-lo e qualquer um é capaz de prever aonde isso vai dar. Contudo, tensiona ao máximo a corda narrativa, até o instante em que o policial exibe para Jamie e o pai, Eddie, que o acompanha, as imagens captadas por câmeras de segurança das redondezas. Jamie persegue a garota, os dois param num estacionamento e ele a ataca a golpes de punhal. Pano longo.

A primeira vez em que fiquei verdadeiramente chocado com um enredo dessa natureza foi diante de “Precisamos Falar Sobre o Kevin” (2011), de Lynne Ramsay — mas não lembro-me de tamanho rebuliço. Decerto o que mesmeriza em “Adolescência” é a naturalidade das atuações; nada aqui é forçado, dando a impressão de que se está presenciando a ruína de um grupo de pessoas que se amavam e nunca mais voltarão a esse estado, sôfregas por entender o que está acontecendo, que tragédia que as colhe e que, feito quase toda tragédia desse jaez, anuncia-se aos poucos depois de um evento qualquer, aparentemente banal, como sabem aqueles que viveram um problema assim na carne. Inclemente, o diretor tira de seu elenco toda a emoção que consegue, e o estranho é que em hora alguma há deslizes, ninguém torna-se histriônico ou melodramático. 

Graham compõe um Eddie que vai ao chão várias vezes, ora surpreso, ora decepcionado e, por fim, colérico com a conduta do filho, e então precisamos falar de Owen Cooper. Sua maturidade, seu timing cênico, seu talento precoce e arrebatador, seu poder quanto a jogar com os sentimentos do espectador e fazê-lo imaginar Jamie como um pobre menino negligenciado em alguma quadra da vida e também ter-lhe repugnância é um assombro. Contudo, a melhor cena de toda a série é a que junta, no desfecho, Eddie e Manda, a esposa e mãe, da ótima Christine Tremarco, numa conversa franca e reveladora sobre a doçura da filha, Lisa, de Amélie Pease, e depois sobre Jamie. Definitivamente, filhos são um enigma que não quero decifrar.


Série: Adolescência
Criação: Stephen Graham e Jack Thorne
Direção: Philip Barantini
Ano: 2025
Gêneros: Drama/Crime 
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.