Thriller investigativo com Zoe Kazan e Carey Mulligan que vai manter seus olhos arregalados até a última cena, no Prime Video Divulgação / Universal Pictures

Thriller investigativo com Zoe Kazan e Carey Mulligan que vai manter seus olhos arregalados até a última cena, no Prime Video

Há momentos em que o cinema ultrapassa sua função de entretenimento e se estabelece como testemunho incontornável da realidade. Certas produções que abordam eventos históricos possuem um valor intrínseco inegável, mas poucas alcançam a força de “Todos os Homens do Presidente”. Desde sua estreia, outros filmes de investigação jornalística buscaram capturar a tensão e a gravidade inerentes à busca pela verdade, e “Ela Disse” entra nesse pequeno grupo ao trazer à luz um dos episódios mais impactantes da história recente: a derrocada de uma das figuras mais influentes da indústria cinematográfica e a exposição de um sistema de abusos sustentado por décadas.

Filmes sobre jornalismo investigativo costumam girar em torno de um momento de virada, aquele ponto em que a dimensão da história se torna evidente. Em “Todos os Homens do Presidente”, isso acontece quando os repórteres percebem que a conspiração se estende a níveis inimagináveis, tornando-se um risco até para suas próprias vidas. Em “Spotlight”, a revelação de que o número de padres abusadores em Boston supera em muito as estimativas iniciais transforma a investigação em um verdadeiro terremoto moral. Já em “Ela Disse”, esse impacto se dá de maneira mais silenciosa, mas não menos devastadora: os registros finais antes dos créditos explicitam que a reportagem não apenas expôs um predador, mas desvendou um esquema de poder que abafava denúncias e perpetuava o silêncio das vítimas.

Diferentemente de narrativas focadas em corrupção política ou conspirações religiosas, “Ela Disse” investiga um problema estrutural que, apesar de onipresente, muitas vezes é tratado como invisível: a cultura de abuso contra mulheres e os mecanismos de silenciamento impostos por aqueles que detêm poder. O filme é fiel ao processo jornalístico, evitando artifícios dramáticos para enfatizar o peso real das descobertas. Essa abordagem exige um olhar atento, pois não há picos de tensão evidentes ou reviravoltas forçadas para prender o espectador. O realismo é sua principal virtude, mas também pode ser um desafio para aqueles que precisam de elementos mais explícitos para dimensionar a gravidade do que está sendo exposto.

A decisão de muitos em se recusar a revisitar os filmes produzidos por Harvey Weinstein reflete um dilema inevitável: como consumir um legado artístico construído sobre alicerces de exploração e violência? A postura de evitar sua obra não se dá por um revisionismo simplista, mas por uma recusa em dissociar o criador de seus crimes. O impacto do trabalho das jornalistas do The New York Times vai muito além do universo cinematográfico. Enquanto Weinstein cumpre sua pena de 23 anos de prisão, outra figura citada na investigação inicial chegou à presidência dos Estados Unidos, um contraste que ressalta a seletividade com que o sistema decide quem será responsabilizado. Essa disparidade levanta questões incontornáveis sobre a conivência social com figuras poderosas e evidencia que os abusos não são desvios isolados, mas sintomas de uma estrutura que os permite prosperar.

As atuações de Carey Mulligan e Zoe Kazan dão humanidade e densidade à narrativa, transmitindo a resiliência e o comprometimento das repórteres. No entanto, a força do filme transcende as performances. “Ela Disse” não apenas documenta um caso, mas obriga o espectador a confrontar verdades incômodas. Para muitas mulheres, assistir ao filme significa revisitar episódios que foram tratados como irrelevantes ou normalizados ao longo da vida. Pequenos gestos de assédio, frequentemente minimizados, aparecem sob uma nova ótica. Para muitos homens, o impacto se manifesta no choque de perceber a extensão e a frequência desses abusos, antes invisíveis para eles.

Se Weinstein fosse um caso isolado, o filme poderia ser encarado como um relato sobre um indivíduo detestável. Mas ele não é. O que “Ela Disse” evidencia, com precisão cirúrgica, é que o poder protege predadores, que o sistema desacredita vítimas e que a impunidade não é uma exceção, mas a regra. O desconforto que a produção provoca em certos públicos não se deve à sua qualidade, mas ao tema que aborda. Para muitos, o incômodo não vem das cenas, mas da constatação de que essa realidade persiste.

Mais do que uma reconstituição fiel de uma reportagem, “Ela Disse” é um diagnóstico da sociedade que permitiu que esses crimes se perpetuassem por tanto tempo. A investigação de Megan Twohey e Jodi Kantor foi essencial para impulsionar o movimento #MeToo, mas a resistência a mudanças estruturais ainda é palpável. O maior mérito do filme não está apenas em narrar um escândalo, mas em questionar as engrenagens que o tornaram possível. É um convite à reflexão e, mais que isso, um lembrete de que essa história não pertence ao passado: ela ainda se desenrola, diariamente, em incontáveis lugares que insistimos em não enxergar.

Filme: Ela Disse
Diretor: Maria Schrader
Ano: 2022
Gênero: Drama/História
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★