O filme da Netflix mais assistido do mundo atualmente: 30 milhões de espectadores em apenas 7 dias Paul Abell / Netflix

O filme da Netflix mais assistido do mundo atualmente: 30 milhões de espectadores em apenas 7 dias

A nostalgia tem uma peculiaridade intrigante: nem sempre se prende ao que de fato existiu. Ela pode, em vez disso, se manifestar naquilo que poderia ter sido. “The Electric State”, dos irmãos Anthony e Joe Russo, encarna esse paradoxo ao reimaginar os anos 1990 não como os conhecemos, mas como uma realidade alternativa onde a tecnologia evoluiu de maneira vertiginosa, moldando um mundo em que humanos e máquinas coexistem — até que uma misteriosa insurreição dos robôs os condena ao exílio em uma vasta terra de esquecimento. Baseado na graphic novel de Simon Stålenhag, o filme acompanha Michelle (Millie Bobby Brown), uma jovem que atravessa um país em desintegração ao lado de um robô silencioso, em busca do irmão desaparecido. Mas sob a aparência de uma aventura de resgate, o longa expande suas fronteiras temáticas, mergulhando na interseção entre memória, inteligência artificial e o impacto avassalador das big techs na paisagem humana e cultural.

Se há algo que define a identidade de “The Electric State”, é sua ambição estética. Diferente da abordagem contemplativa de “Tales from the Loop”, outra adaptação da obra de Stålenhag, os irmãos Russo optam por uma estética grandiosa, evocando o espírito das aventuras cinematográficas dos anos 1990, mas filtrado pelo olhar dinâmico dos blockbusters contemporâneos. O resultado é um filme que quer parecer antigo, mas que só poderia ter sido feito hoje.

O design de produção recria com precisão o universo visual da graphic novel, com outdoors desbotados, rodovias intermináveis e colossos mecânicos reduzidos a ruínas. Essa paisagem evoca uma sensação de melancolia, um futuro que já nasceu decadente. No entanto, essa ambientação, que poderia ser explorada com maior lirismo, se desenrola em um ritmo acelerado, repleto de sequências de ação coreografadas e diálogos ágeis, aproximando a narrativa de um espetáculo que, por vezes, se sobrepõe à reflexão.

Essa dualidade também se reflete no elenco. Chris Pratt interpreta Keats, um contrabandista cujo arquétipo ecoa figuras clássicas do cinema de aventura, como Indiana Jones e Han Solo, mas sem a profundidade necessária para transcender a homenagem. Seu carisma sustenta o papel, mas não o reinventa. Já Stanley Tucci entrega uma atuação magnética como Ethan Skate, um bilionário do setor tecnológico que, com sua frieza e visão de futuro distorcida, evoca figuras como Jeff Bezos e Ed Harris em “O Show de Truman”, tornando-se um retrato assustadoramente plausível do poder corporativo moderno. Millie Bobby Brown, por sua vez, ancora a história com sensibilidade, embora sua química com Pratt seja menos instigante do que sua interação com as entidades digitais que povoam essa realidade distópica.

Mas a questão mais provocadora de “The Electric State” está no modo como lida com a inteligência artificial. O filme sugere um futuro em que máquinas não são apenas ferramentas, mas agentes que reivindicam seu espaço na sociedade. A partir de que ponto a IA deixa de ser uma criação e passa a ser uma entidade com direito a existência própria? Esse dilema, que poderia servir como eixo central da narrativa, acaba se diluindo diante do espetáculo visual e das convenções do cinema de ação. Em um mundo saturado de algoritmos que definem preferências, alimentam decisões e preveem comportamentos, a obra poderia ter explorado com maior profundidade o temor e o fascínio que cercam essa tecnologia emergente. No entanto, o roteiro se contenta em usá-la como pano de fundo para cenas eletrizantes, deixando que essa questão ecoe apenas nas entrelinhas.

A trilha sonora de Alan Silvestri reforça a atmosfera do filme, criando uma simbiose entre passado e futuro. O ápice dessa fusão está em sua versão de “Wonderwall”, do Oasis, executada com harpa e piano — um detalhe que encapsula a proposta do longa de evocar uma nostalgia que nunca existiu de fato, mas que parece estranhamente familiar. É essa ilusão temporal que faz de “The Electric State” uma experiência singular: ele não apenas imagina um futuro alternativo, mas ressignifica memórias culturais que, paradoxalmente, nunca foram vividas. O filme se apropria de referências e emoções coletivas para criar uma ficção que, ainda que nunca tenha sido real, parece ter sido arrancada de um passado que esquecemos.

Entretanto, se a intenção era recriar a grandiosidade do cinema de aventura, o filme também revela os paradoxos do entretenimento contemporâneo. Ele presta tributo ao passado, mas está inevitavelmente preso às fórmulas que moldam os blockbusters atuais. A busca incessante por impacto e movimento constante impede momentos de maior introspecção, tornando a obra um espetáculo visual impressionante, mas menos contemplativo do que poderia ser. Esse excesso de dinamismo, ainda que funcione para manter o público imerso, acaba diluindo algumas das reflexões mais instigantes que a história poderia abordar.

Ainda assim, há um mérito inegável na forma como a trama se desenrola. Diferente de muitas produções previsíveis, “The Electric State” se permite tomar desvios inesperados, recusando o caminho fácil de uma narrativa inteiramente calculada por algoritmos. Em uma indústria cada vez mais moldada por estatísticas de público e padrões estabelecidos, um filme que ousa construir um universo próprio — mesmo que imperfeito — já representa um ato de resistência criativa.

Talvez esse seja o verdadeiro legado de “The Electric State”: um lembrete de que o cinema ainda pode brincar com as regras que ele mesmo impõe, reinventando não apenas histórias, mas também memórias. O futuro da ficção científica pode não estar em prever o que virá, mas em construir lembranças de um passado que jamais existiu. E, ao fazer isso, abrir novas possibilidades para aquilo que ainda está por vir.

Filme: The Electric State
Diretor: Anthony e Joe Russo
Ano: 2025
Gênero: Aventura/Ficção Científica
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★