Obra-prima inestimável aclamada em Sundance acaba de estrear na Netflix Aaron Ricketts/Focus/

Obra-prima inestimável aclamada em Sundance acaba de estrear na Netflix

Entre os arranha-céus impassíveis e as ruas pulsantes de Nova York, “Mil e Um” se desenha como um testemunho feroz da luta contra um sistema que sufoca antes mesmo de oferecer uma chance. O filme, premiado em Sundance, mergulha na trajetória de Inez, uma mulher que desafia não apenas a ordem estabelecida, mas também as estatísticas implacáveis que governam vidas como a sua. Ao reencontrar Terry, seu filho, em meio às engrenagens impessoais do sistema de assistência social, Inez toma uma decisão radical: sequestrá-lo. O que poderia ser interpretado como um ato de desespero, no entanto, revela-se um grito de resistência — um esforço desesperado para reescrever um destino que já parecia traçado.

Desde os primeiros minutos, o filme estabelece um senso de urgência inquietante. A câmera acompanha Inez com uma proximidade quase claustrofóbica, capturando sua exaustão, sua resiliência e, sobretudo, sua determinação em oferecer a Terry algo que o mundo insiste em lhe negar: um lar. Mas como construir um futuro quando as estruturas ao redor conspiram para miná-lo? Sem dinheiro, sem segurança e sem garantias, ela se vê obrigada a improvisar, confiando apenas em sua força e em sua recusa intransigente em aceitar o papel de vítima. Teyana Taylor, em uma atuação magnética, dá vida a essa complexidade com uma intensidade rara  — sua Inez não é uma heroína idealizada, mas uma mulher de carne e osso, falível, imperfeita e inesquecível.

Se a maternidade é um dos eixos centrais da narrativa, a cidade de Nova York se impõe como um personagem tão crucial quanto qualquer um dos protagonistas. O Harlem, com suas esquinas vibrantes e suas cicatrizes urbanísticas, reflete a passagem do tempo e o impacto implacável da gentrificação. Os planos de moradia deteriorados, os despejos silenciosos e a especulação imobiliária desenham um cenário onde o pertencimento se torna um privilégio, e não um direito. O apartamento que Inez conquista a duras penas logo se transforma em uma metáfora de sua própria batalha: um espaço instável, constantemente ameaçado pela degradação e pela possibilidade de ruína. A fotografia do filme amplifica essa sensação de deslocamento, explorando luzes frias e composições que reforçam a precariedade como uma presença constante na vida dos personagens.

A relação entre Inez e Terry evolui longe de qualquer romantização: há amor, mas também tensão, atritos e silêncios carregados de significado. O tempo molda o vínculo entre os dois, mas nunca o simplifica. A atuação de Josiah Cross, que interpreta Terry na adolescência, adiciona camadas de complexidade ao personagem, evidenciando suas contradições e conflitos internos sem recorrer a dramatizações exageradas. William Catlett, no papel de Lucky, também contribui para essa tapeçaria emocional densa, encarnando um homem dividido entre afeto genuíno e sua própria incapacidade de oferecer a estabilidade que tanto deseja.

O filme avança sem pressa, mas com precisão cirúrgica, conduzindo o espectador por uma trajetória onde cada escolha tem peso e cada consequência ressoa com impacto real. Quando o desfecho se desenrola, não há espaço para previsibilidade: o golpe final não é apenas narrativo, mas emocional. A revelação que redefine a jornada de Inez não surge como um artifício, mas como um desdobramento orgânico de sua luta — uma verdade que, ao emergir, expõe as feridas que sempre estiveram ali, mas que o filme habilmente nos fez ignorar até o último momento. É um encerramento que não apenas quebra as expectativas, mas vai além, obrigando o espectador a reconsiderar tudo o que viu até então.

Em tempos de narrativas pré-formatadas e produções desenhadas para o consumo rápido, “Mil e Um” é um exemplo do que o cinema independente pode alcançar quando recusa concessões. É uma obra que não apenas registra uma realidade social urgente, mas a traduz em cinema da mais alta potência — um cinema que questiona, inquieta e permanece ecoando muito depois da projeção terminar. Inez, em sua luta feroz e incansável, representa não apenas uma personagem inesquecível, mas uma verdade inescapável: para muitos, sobreviver já é, por si só, um ato de resistência.

Filme: Mil e Um
Diretor: A.V. Rockwell
Ano: 2025
Gênero: Crime/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★