O amor está sempre à espreita, como a grande ameaça da vida. Apaixonar-se pode ser a perdição irreparável de alguém, sobretudo se o sentimento avassalador de descobrir-se tomado pela vontade de estar além da própria pele vem demasiado cedo, mas viver nunca foi um problema matemático, cujo frio resultado não encerra nenhuma outra possibilidade. Faz-se necessário experimentar, arriscar-se, flertar com o perigo muitas vezes para, talvez, se começar a entender que a vida tem seus próprios mandamentos. Transitando de um para o outro lado, escapando de determinadas armadilhas para se deixar capturar por umas tantas, ledamente, fazemos da existência a arte de saber esquivar-se e de gostar de sofrer.
Antes mesmo que o galo cante pela terceira vez numa madrugada chuvosa, certo de que sem essa sua doida empreitada o mundo estará condenado às trevas de uma noite sem fim, já teremos também nós nos submetido aos mil açoites do carrasco inexpugnável que nos habita, indignado por termos aberto a única porta que deveríamos manter fechada, se não para sempre, pelo maior tempo possível. “A Contadora de Filmes” é uma história de amor, mas não só — e nem de um amor qualquer. Lone Scherfig vai ao Chile, terra do escritor Hernán Rivera Letelier, em cujo romance homônimo seu trabalho se baseia, ansiando resgatar as memórias de um tempo remoto de um lugar perdido, onde vive um povo que sonha graças a uma menina incomum.
Malgrado o desejo sufocante por destacar-se em meio à tacanhice, todos queremos ter a vida o mais normal, o mais comum, até o mais previsível quanto se puder, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, as neuroses evolam-se como o perfume das rosas no primeiro raio de sol e as mágoas, derradeiro refúgio da tristeza, somem como se cansadas de não mais causar dor, resiste a esperança da felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se, no fundo, algum detalhe nefasto indicasse que não a merecemos.
Dos lugares mais áridos pode brotar a flor mais delicada. Foi assim com María Margarita, uma garota simples com um talento especial, muito necessário na comunidade onde cresceu, no coração do deserto do Atacama, feito do sal da terra e das lágrimas dos homens. Em 1966, o progresso era uma ideia subjetiva que não alcançava a todos. As pessoas que rodeiam María sustentam-se com o que conseguem das entranhas do solo, e quando o cansaço permite, divertem-se no cinema, ou melhor, no cinema possível.
O roteiro de Isabel Coixet, Rafa Russo e Walter Salles concentra-se na protagonista, que verte as projeções para uma interpretação dramática em que sua sensibilidade aflora e ela encarna todos os papéis de todos os filmes, dos romances açucarados aos tipos suspeitos de “Três Homens em Conflito” (1966), a obra-prima de Sergio Leone (1929-1989). Alondra Valenzuela prepara o terreno para que Bérénice Bejo siga explorando as fraquezas e os traumas da personagem, que não descuida dos afazeres domésticos e do pai, Medardo, de Antonio de la Torre, cada vez mais doente. No terceiro ato, Scherfig encaixa o amadurecimento de María e suas primeiras experiências sexuais com Hauser, o rico latifundiário interpretado por Daniel Brühl, com menções a revolução popular que culmina com a ascensão do socialista Salvador Allende (1908-1973), até que as ilusões e as utopias ruam de vez. E então María Margarita tenha da vida uma outra impressão.
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