A Netflix trouxe de volta um dos filmes mais lendários de Brian De Palma e Al Pacino Divulgação / Universal Pictures

A Netflix trouxe de volta um dos filmes mais lendários de Brian De Palma e Al Pacino

Lançado em 1983, “Scarface” se impôs como um dos filmes mais impactantes do cinema de crime, uma obra que transcende a violência estilizada para mergulhar no desespero febril de um mundo onde ambição e paranoia caminham lado a lado. Sob a direção de Brian De Palma e com roteiro de Oliver Stone, o longa revisita o clássico “Scarface — A Vergonha de uma Nação”, de 1932, deslocando sua trama para o êxodo de Mariel, período em que Fidel Castro permitiu a saída de dissidentes e criminosos rumo aos Estados Unidos. Nesse cenário, Tony Montana surge como um forasteiro movido por um apetite voraz pelo poder. Ele não aceita os limites impostos pela realidade; seu objetivo é conquistá-los ou destruí-los. Se a versão original dialogava com o império de Al Capone, a releitura de De Palma escancara a lógica da economia da cocaína, onde lealdades são descartáveis, e o sucesso se mede pela capacidade de aniquilar qualquer obstáculo.

Diferente de outros filmes sobre ascensão e queda no submundo do crime, “Scarface” não se contenta em narrar uma trajetória previsível. A brutalidade aqui não é apenas um artifício visual, mas um reflexo da espiral de loucura que consome Tony Montana. Ele não se encaixa no arquétipo do vilão implacável, nem do anti-herói carismático; é um homem atormentado por sua própria farsa. Desde sua chegada a Miami, enganando agentes da imigração com uma postura desafiadora, até o último instante de seu império em ruínas, sua jornada é marcada por contradições. Montana se enxerga como um predador absoluto, mas sua impulsividade e insegurança o transformam em presa fácil de suas próprias escolhas. Seu destino já está traçado antes mesmo de seu primeiro tiro, não por uma inevitabilidade narrativa, mas porque sua ânsia por domínio só poderia levá-lo ao colapso.

A estética do filme reforça essa atmosfera febril, oscilando entre o hiper-realismo e o delírio operístico. Sequências de violência crua — como a cena angustiante do assassinato com uma serra elétrica — convivem com imagens de opulência artificial, onde clubes noturnos e mansões palacianas mais se assemelham a cenários de uma fantasia corroída. A trilha sonora de Giorgio Moroder, repleta de sintetizadores impessoais, reforça essa desconexão emocional: sua música não guia a ação, mas a paralisa, capturando a alienação de um mundo onde prazer e terror se confundem. “Scarface” não apenas retrata um império criminoso em ascensão, mas o horror do vazio que o acompanha, um jogo de poder que nunca oferece o êxtase que promete.

No centro desse caos, Al Pacino entrega uma performance que extrapola qualquer tentativa de moderação. Seu Tony Montana é um estudo sobre o excesso: gritos, olhares maníacos, gestos agressivos, tudo compõe uma figura que não busca redenção nem resiste à própria destruição. Ele não quer apenas ser temido ou respeitado; quer moldar o mundo à sua imagem, um delírio de grandeza que se traduz em sua obsessão por controle absoluto. Esse traço se manifesta na relação doentia com Gina, sua irmã, interpretada por Mary Elizabeth Mastrantonio. O ciúme quase incestuoso que sente por ela não é um desvio narrativo, mas a expressão última de seu desejo de posse. Seu mundo não comporta afeto genuíno, apenas domínio.

Entretanto, a grandiosidade da narrativa não se estende a todos os personagens. Elvira, vivida por Michelle Pfeiffer, surge como um espectro decorativo, um acessório à trajetória de Montana. Sua presença reforça a maneira como a história privilegia um universo masculino, onde as dinâmicas de poder são estabelecidas entre homens que se alternam entre lealdade e traição. Ainda assim, essa escolha narrativa não dilui a força do filme, pois o próprio Tony Montana é, antes de tudo, uma vítima de sua própria encenação. Em um mundo onde cada transação esconde uma ameaça e alianças desmoronam ao menor sinal de fraqueza, o poder não é uma conquista, mas uma sentença de paranoia.

O impacto de “Scarface” não reside apenas na previsibilidade de sua tragédia, mas na intensidade com que ela se desenrola. O espectador sabe que Tony Montana está condenado, mas isso não o impede de assistir, fascinado, a cada passo de sua ruína. Mais do que um filme sobre gângsteres, o longa é um retrato da ilusão do sucesso absoluto, um estudo sobre a fome insaciável por mais — mais dinheiro, mais controle, mais reconhecimento — que nunca se traduz em satisfação. Quando Montana, entediado e drogado, afunda na cadeira de um clube lotado, percebemos que ele já perdeu, mesmo que ainda ostente a coroa de seu império. No ato final, cego pela própria soberba, avança rumo à destruição sem hesitar, transformando sua morte não em um choque, mas em uma confirmação inevitável.

Ao se conectar à tradição do cinema de gângster, “Scarface” dialoga com um legado que remonta à era clássica, mas sua força real está na maneira como traduz o espírito de sua própria época. Não é um filme moralista nem um conto de advertência; é um espelho de uma era onde o sucesso se confunde com a autodestruição. “O mundo é seu”, diz um letreiro luminoso ao fundo de uma cena-chave. O grande paradoxo de Tony Montana é nunca perceber que esse mundo que tanto almejou já estava perdido antes mesmo de conquistá-lo.

Filme: Scarface
Diretor: Brian De Palma
Ano: 1983
Gênero: Crime/Drama/Épico
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★