Kate Winslet travou uma batalha pessoal para levar “Lee” às telas, um projeto que encontrou inúmeras resistências antes de se concretizar. O filme presta um tributo à extraordinária trajetória da fotógrafa Lee Miller, cujo olhar afiado registrou a brutalidade da Segunda Guerra Mundial. Mais do que um simples relato biográfico, a narrativa se debruça sobre os dilemas de uma mulher determinada a esculpir seu próprio espaço em um universo dominado por homens, enquanto testemunhava, através de sua câmera, os horrores que moldariam a memória coletiva do século 20.
A trama se desenrola acompanhando a transformação de Miller, que parte do glamour da fotografia de moda para encarar a crueza dos campos de batalha. Inicialmente uma peça-chave na Vogue britânica sob a rigorosa direção de Audrey Withers (Andrea Riseborough), ela sente a necessidade de ir além das páginas de uma revista e embarca numa jornada que a levará ao coração da guerra. Seu casamento com Roland Penrose (Alexander Skarsgård) sofre os impactos da distância e da obsessão profissional, ao mesmo tempo em que sua parceria com o fotógrafo David Scherman (Andy Samberg) se intensifica. Juntos, registram imagens devastadoras, incluindo as de campos de concentração nazistas, onde a realidade supera os piores pesadelos. A direção de Ellen Kuras evita explorar a violência de maneira gratuita, mas não poupa o espectador do peso insuportável do que a protagonista presencia e documenta.
O roteiro, assinado por Liz Hannah, Marion Hume e John Collee, estrutura-se a partir de entrevistas concedidas por Miller na década de 1960 a um jovem jornalista (Josh O’Connor). Esses encontros, marcados por uma tensão latente, revelam mais do que a relutância de revisitar o passado: há ali um embate silencioso sobre o direito à memória e às cicatrizes que ela deixa. À medida que as camadas da história se desdobram, percebe-se que há algo mais na relação entre os dois, um vínculo que ressoa além da mera curiosidade jornalística. O longa também sugere as complexidades morais daqueles que, para sobreviver, foram obrigados a pactuar com circunstâncias inaceitáveis. Isso se manifesta especialmente nas figuras de Solange (Marion Cotillard) e Nusch (Noémie Merlant), cujas trajetórias ilustram os dilemas impostos pela guerra e suas ambiguidades.
“Lee” mescla a brutalidade do front com uma abordagem estética que valoriza a atmosfera e o impacto psicológico. A fotografia de Pawel Edelman emprega uma paleta que transita entre o sombrio e o vívido, criando um jogo de contrastes que reflete os conflitos internos da protagonista. No entanto, há uma contenção na condução narrativa que, se por um lado evita o sentimentalismo, por outro talvez atenuasse o impacto visceral de certas passagens. Em momentos cruciais, a crueza da guerra poderia ter sido explorada com ainda mais contundência, ampliando a imersão na experiência da personagem.
Kate Winslet entrega uma atuação de precisão cirúrgica, recusando-se a transformar Miller em um arquétipo convencional de heroína. Sua abordagem privilegia o desgaste emocional e a resiliência silenciosa, resultando em uma interpretação rica em nuances. Skarsgård e Samberg cumprem bem seus papéis de apoio, enquanto Riseborough e Cotillard adicionam camadas ao mosaico de personagens que orbitam a trajetória da protagonista.
Mesmo que “Lee” adote uma abordagem contida em certos momentos, sua relevância é inquestionável. Em meio a uma indústria que frequentemente recorre a fórmulas previsíveis, o filme se sobressai como um retrato incisivo e instigante de uma mulher que ousou enfrentar não apenas os horrores da guerra, mas também as limitações impostas por seu tempo. Uma obra que, longe de ser esquecível, deixa marcas profundas, assim como os registros fotográficos de sua protagonista.
★★★★★★★★★★