Melhor que “Pearl Harbor”: drama de guerra com Jude Law, de Jean-Jacques Annaud, é tesouro inestimável na Netflix Divulgação / Paramount Pictures

Melhor que “Pearl Harbor”: drama de guerra com Jude Law, de Jean-Jacques Annaud, é tesouro inestimável na Netflix

Outubro de 1942. Em meio à devastação de Stalingrado, um duelo silencioso se desenrola entre as ruínas de uma cidade que se tornou o epicentro da guerra total. “Círculo de Fogo” ultrapassa a tradição dos filmes de combate ao transformar um confronto entre franco-atiradores em um xadrez mortal de inteligência e paciência. Vassili Zaitsev, um jovem caçador dos Urais que se tornou o ícone da resistência soviética, encara Major König, um estrategista alemão cujo frieza e precisão são temidas até mesmo entre seus aliados. No jogo da guerra, cada disparo é uma sentença, e cada erro, uma execução.

Jean-Jacques Annaud traz ao filme uma tensão latente que transcende os combates tradicionais, explorando não apenas a brutalidade da batalha, mas também as dinâmicas psicológicas dos protagonistas. A câmera mergulha na expressão glacial dos olhos de Jude Law e Ed Harris, ampliando a sensação de que a guerra é, antes de tudo, um duelo de vontades. Essa abordagem transforma o filme em um estudo minucioso da guerra como um jogo de paciência e estratégia, onde a capacidade de esperar o momento certo vale mais do que a força bruta.

A cena inicial é um dos momentos mais impactantes do cinema de guerra. Os recrutas soviéticos, atirados ao campo de batalha sem armas suficientes, são dizimados antes mesmo de alcançarem o solo firme de Stalingrado. A desesperança é palpável. O horror se materializa na impotência coletiva diante da aniquilação implacável. A fotografia, carregada de tons frios e poeira incessante, amplia a sensação de enclausuramento, enquanto a edição orquestra o caos com uma precisão que impede o olhar de se desviar.

No centro desse turbilhão, Vassili Zaitsev é alçado à condição de herói nacional, não apenas por sua destreza, mas por se tornar a peça central da propaganda soviética. Danilov, interpretado por Joseph Fiennes, personifica a função da propaganda de guerra: transformar um soldado em símbolo, mesmo que isso exija manipulação e mitificação. Bob Hoskins, no papel de Nikita Khruschov, traz a dimensão política ao conflito, evidenciando que a guerra se travava tanto no campo de batalha quanto na mente das tropas. No tabuleiro ideológico, a verdade é secundária diante da necessidade de manter a moral elevada.

Entretanto, a tentativa do roteiro de incorporar uma narrativa romântica entre Vassili e Tania (Rachel Weisz) desvia o foco da essência do filme. A personagem, que inicialmente carrega um potencial dramático relevante ao retratar uma mulher que se recusa a ser mera vítima da guerra, acaba reduzida a um elemento secundário, absorvido pelo arco narrativo do protagonista masculino. Em um contexto onde a luta pela sobrevivência define cada decisão, a abordagem romântica soa deslocada e artificial.

A direção de Annaud, porém, nunca permite que esses desvios diluam a força do conflito principal. O duelo entre Vassili e König é construído com um rigor meticuloso, onde cada silêncio pesa tanto quanto os tiros. Os escombros de Stalingrado se tornam um tabuleiro de guerra, onde a paciência e a leitura dos movimentos do oponente são determinantes para a sobrevivência. O som se torna um elemento narrativo essencial: passos abafados, respirações contidas e o disparo solitário que ressoa como um veredicto final.

James Horner, por outro lado, erra na mão ao compor uma trilha que muitas vezes se sobrepõe à crueza das imagens. O peso do confronto dispensa melodias grandiosas; o silêncio e os ruídos sufocados da cidade mutilada bastariam para compor a atmosfera da batalha. Ainda assim, “Círculo de Fogo” evita os clichês do gênero ao construir uma narrativa que coloca a estratégia e a mente dos combatentes acima dos espetáculos explosivos habituais.

Um dos maiores acertos do filme é sua recusa em diluir a brutalidade da guerra em discursos simplistas. A batalha de Stalingrado não é apenas pano de fundo, mas uma entidade própria, devorando vidas e redefinindo destinações. O filme se permite um olhar crítico sobre a propaganda, sobre o papel da guerra na criação de mitos e sobre a linha tênue entre estratégia e sobrevivência.

O embate entre Vassili e König deixa de ser apenas um duelo entre atiradores de elite. Torna-se uma metáfora da guerra em si: um jogo de paciência onde o vencedor é apenas aquele que sobrevive tempo suficiente para contar a história. E, na guerra, nem sempre a história pertence aos que melhor atiram, mas sim aos que permanecem vivos para escrever seus próprios códigos.

Filme: Círculo de Fogo
Diretor: Jean-Jacques Annaud
Ano: 2001
Gênero: Ação/Drama/Guerra
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★