O melhor filme da Netflix em 2025, até agora Divulgação / Motion Blur Films

O melhor filme da Netflix em 2025, até agora

Entre as inúmeras tentativas do cinema de abordar conflitos armados, poucas obras realmente escapam das armadilhas mais comuns: a glorificação da violência sob o pretexto de denúncia ou a simplificação de dilemas morais para caber em narrativas de fácil digestão. “Número 24” evita esses atalhos fáceis e propõe algo mais incômodo, forçando o espectador a confrontar as ambiguidades da resistência e os paradoxos inerentes à luta contra a tirania. Enquanto algumas produções inflam paixões nacionalistas e outras se limitam a um discurso pacifista genérico, o longa de John Andreas Andersen se infiltra nas complexidades dessa equação, explorando o impacto do conflito não apenas nos campos de batalha, mas também na consciência daqueles que, em nome da liberdade, foram obrigados a agir com a mesma brutalidade que condenavam. Inspirado na trajetória de Gunnar Sønsteby, um dos maiores símbolos da resistência norueguesa, o filme se abstém de soluções fáceis e entrega uma meditação feroz sobre heroísmo, moralidade e as sombras que perseguem aqueles que, ao combater o mal, arriscam se tornar parte dele.

A narrativa se estrutura a partir de um olhar bifocal: de um lado, acompanhamos um Sønsteby já envelhecido (interpretado por Erik Hivju), prestes a revisitar seu passado diante de um grupo de estudantes em Rjukan; de outro, adentramos sua juventude (vivida por Sjur Vatne Brean), quando sua resistência ao avanço nazista ainda se manifestava em gestos discretos. O contraste entre o homem calejado pelo tempo e o jovem que encara um mundo em colapso confere à trama um senso de inevitabilidade trágica. Em meio a passeios despreocupados com Erling Solheim (Jakob Maanum Trulsen), cuja apatia política o distancia dos horrores que se avizinham, Gunnar se depara com sinais explícitos da ocupação: livros queimados, prisões arbitrárias e o avanço de uma ideologia que ameaça silenciar sua pátria. Essa tensão crescente culmina na transformação do protagonista em um agente ativo da resistência, mas a trajetória que se segue não se encaixa nos moldes convencionais das narrativas heroicas.

O longa recusa o clichê do protagonista carismático e imbatível. Em vez disso, Sønsteby se desenha como alguém cujo impacto advém da persistência meticulosa e da capacidade de operar nas sombras. Designado como “Número 24”, ele se torna peça-chave em ações clandestinas que incluem a disseminação de propaganda antinazista e atentados contra alvos estratégicos. Andersen, conhecido por sua habilidade em construir tensão em “Mar do Norte” e “Terremoto”, transporta essa expertise para sequências em que a urgência não vem apenas das explosões e perseguições, mas também dos dilemas morais que acompanham cada decisão tomada no campo da resistência. Em determinado momento, Gunnar se vê encarregado de eliminar colaboradores noruegueses do regime nazista, incluindo seu antigo amigo Erling. É nesse ponto que o filme afasta qualquer vestígio de maniqueísmo e mergulha em um território ético nebuloso, onde a linha entre justiça e vingança se torna indistinguível.

O clímax se desdobra na sala onde Sønsteby, já idoso, encara um questionamento inesperado. O que começa como uma palestra sobre bravura e sacrifício se transforma em um confronto de memórias, quando um dos estudantes revela ter perdido parentes em decorrência das operações lideradas pelo protagonista. A cena se desvia das convenções habituais de filmes do gênero ao permitir que o discurso da resistência seja desafiado sem que respostas prontas sejam oferecidas. Há um desconforto palpável na tentativa do ex-combatente de articular uma justificativa que vá além do senso de dever patriótico. Até que ponto a guerra justifica seus meios? Quando o discurso da liberdade se torna indistinguível da retórica do inimigo? Essas perguntas permanecem ecoando enquanto a narrativa se desdobra, recusando-se a encerrar a discussão com um julgamento definitivo.

Em termos de execução, o filme equilibra sua solidez histórica com escolhas estilísticas que o afastam da frieza documental. A trilha sonora, que transita entre composições orquestrais e inserções inesperadas como “Exit Music (For a Film)”, do Radiohead, adiciona camadas de emoção e anacronismo calculado. A direção de arte recria a atmosfera dos anos 1940 com precisão meticulosa, desde os figurinos até a paleta de cores que reforça o clima opressivo da ocupação nazista. O elenco, por sua vez, entrega performances que sustentam o peso emocional da narrativa. Se Sjur Vatne Brean conduz a juventude de Sønsteby com um equilíbrio entre determinação e inquietação, Erik Hivju e Flo Fagerli dominam os momentos mais intensos com atuações que transcendem a reconstrução histórica e transformam a última parte do filme em um duelo de perspectivas. A química entre ambos evoca a intensidade de clássicos como “12 Homens e uma Sentença”, sugerindo que a discussão moral travada na tela poderia, por si só, sustentar um filme inteiro.

Ao se encaminhar para o desfecho, “Número 24” lança uma reflexão que se impõe com força sobre qualquer tentativa de romantizar a guerra: quando a resistência se torna um espelho do que combate, ainda podemos chamá-la de resistência? Para alguns, a narrativa serve como um lembrete de que toda guerra, independentemente da causa, deixa cicatrizes impossíveis de justificar plenamente. Para outros, a crítica pode parecer insuficiente diante da brutalidade contemporânea, onde os mesmos discursos que condenam atrocidades passadas convivem com políticas que perpetuam novas formas de destruição. O filme não oferece respostas, e talvez essa seja sua maior virtude. Ele exige que o espectador encare as contradições inerentes ao conceito de heroísmo e reflita sobre o peso das escolhas feitas em tempos extremos. Se isso se torna desconfortável, talvez seja porque estamos acostumados demais a buscar conforto onde ele não deveria existir.

Filme: Número 24
Diretor: John Andreas Andersen
Ano: 2024
Gênero: Biografia/Espionagem/Guerra
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★