Haverá um momento, talvez distante, mas inevitável, em que entidades celestiais descerão entre nós, incumbidas de observar o que fizemos de nossa trajetória antes que a sentença seja pronunciada. Enquanto isso, no altar, o sacerdote ergue a pergunta decisiva: aceitamos aquele ou aquela ao nosso lado tal como é, sem artifícios ou ilusões? Não basta responder afirmativamente; há a exigência de lealdade perpétua, na alegria e na tristeza, na saúde e na enfermidade, até que a própria morte imponha sua separação definitiva.
Nem todos suportam o peso desse pacto e, por vezes, a única saída parece ser a fuga. Raimund Gregorius, personagem central de “Trem Noturno para Lisboa”, sabe bem disso. Professor de filosofia, enredado entre o niilismo e o hedonismo, vê seu cotidiano ser subitamente interrompido quando uma jovem, bela e enigmática, se lança à beira do abismo. Ao intervir, ele próprio se vê precipitado em um dilema que transborda os limites do pensamento abstrato e se inscreve na carne da existência. A partir daí, Bille August, cujo “Pelle, o Conquistador” foi laureado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, deixa que seus personagens se movam por conta própria, desamarrados de qualquer condução evidente.
Errar é inevitável, e a vida se encarrega de nos lembrar disso a cada esquina, nas encruzilhadas onde somos confrontados com nossa própria fragilidade. Nessas ocasiões, o espelho nos devolve um reflexo que nem sempre reconhecemos, um semblante moldado por escolhas e renúncias, cujos contornos se tornam visíveis apenas no silêncio das noites insones ou nos instantes de extrema lucidez. Há quem afirme que esse desconforto existencial não passa de uma ilusão dos emocionalmente suscetíveis, incapazes de aceitar a superficialidade dos fatos e das relações humanas. Mas a verdade é que, quando o véu se rompe, não há quem escape da vertigem de se perceber estrangeiro dentro da própria pele, habitante de um mundo que, sob a luz correta, revela-se tão volátil quanto um sonho à beira do despertar.
Gregorius pertence a essa estirpe de almas inquietas, que desde cedo entendem que a realidade raramente oferece substância genuína, apenas um simulacro empobrecido, um caldo insípido que escorre por entre os dedos. Para ele, os afetos possuem a fragilidade de algo há muito partido, mas que ainda se sustenta por força da inércia, agarrando-se ao ilusório colorido de uma areia que não cessa de deslizar. Baseado na obra homônima do filósofo suíço Peter Bieri (1944-2023), o roteiro de August e Ulrich Herrmann se estrutura com precisão em torno da hesitação essencial do protagonista, que decide seguir os rastros da jovem até Lisboa, onde embarca em uma busca que vai além da geografia: uma travessia interna, conduzida por memórias que o arrastam a um embate consigo mesmo. Lá, um encontro inesperado lhe sugere que talvez a chama de sua existência ainda tenha combustível para queimar. Com a sofisticação sutil que lhe é característica, August constrói um jogo de olhares e silêncios, em que Jeremy Irons e Mélanie Laurent manipulam a percepção do espectador, conduzindo-o por uma narrativa onde até o não-dito reverbera com intensidade singular.
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