Na Netflix: o filme que lucrou 15 vezes seu orçamento e entregou a atuação mais perturbadora do cinema moderno com Lupita Nyong’o Divulgação / UPI

Na Netflix: o filme que lucrou 15 vezes seu orçamento e entregou a atuação mais perturbadora do cinema moderno com Lupita Nyong’o

Entre as tantas razões que tornam alguns filmes inesgotáveis em significados está a maneira como se permitem múltiplas leituras. Cada espectador pode se debruçar sobre um mesmo enredo e enxergar nuances distintas, interpretar metáforas sob ângulos próprios e decifrar alusões de modos que extrapolam o óbvio. “Nós” (2019), de Jordan Peele, ilustra essa complexidade ao construir uma experiência visual carregada de símbolos e sensações que expandem sua narrativa para muito além do que se vê.

A jornada inicia-se em 1986, quando uma família visita um parque de diversões à beira-mar em Santa Cruz, Califórnia. A aparente trivialidade da cena se desmantela no instante em que a filha se perde no labirinto de espelhos de uma atração desativada, desencadeando um evento que se insinua como um detalhe fugaz, mas cuja reverberação se fará sentir por toda a trama. A transição para o presente nos apresenta Adelaide Wilson, vivida por Lupita Nyong’o, agora adulta e viajando com sua família para a casa de veraneio na mesma cidade. Seu desconforto latente em retornar ao lugar onde sua infância fora interrompida por algo inexplicável é evidente, embora Gabe (Winston Duke), seu marido, tente dissipar suas inquietações para manter o espírito despreocupado das férias em família. O mal-estar se intensifica quando eventos desconcertantes começam a se desenrolar na praia, justamente quando se despedem dos Tylers (Elisabeth Moss e Tim Heidecker) e suas filhas gêmeas.

O terror se impõe de forma irrefutável ao cair da noite, quando uma família idêntica à de Adelaide surge diante de sua casa. O conceito dos doppelgängers, figuras que espelham a aparência física sem qualquer explicação plausível, é o cerne do horror proposto por Peele. Em vez de se ancorar em explicações científicas ou sobrenaturais diretas, o roteiro sugere uma experiência perturbadora: essas entidades habitam túneis subterrâneos, resultado de um experimento governamental falido. Mantidos à margem da sociedade e alimentando-se de coelhos, esses seres desenvolveram uma consciência própria e, sob a liderança de Red, a cópia de Adelaide, emergem para reivindicar seu lugar na superfície, transformando a luta por sobrevivência em um embate de identidades e pertencimento.

A evocação do evento real Hands Across America, manifestação que em 1986 simbolizou um ideal de solidariedade coletiva entre cidadãos americanos, surge aqui como uma sátira afiada. Ao reproduzir esse gesto, os doppelgängers reconfiguram um símbolo de união em uma encenação grotesca de vingança e revolta. Em leitura psicanalítica, podem ser compreendidos como projeções das sombras que permeiam a sociedade, espelhos dos conflitos silenciosos que assombram indivíduos e comunidades. Mas Peele não permite que essa interpretação se resolva em uma visão reducionista: seu filme propõe múltiplas camadas, explorando preconceitos e desigualdades de forma que nenhuma metáfora se esgota em sua primeira leitura.

O mais inquietante é a insinuação de que essas cópias não são apenas reflexos desprovidos de subjetividade. Pelo contrário, elas podem ser a parte mais autêntica de quem tentamos ser. A linha entre o eu e o outro, entre o civilizado e o rejeitado, dissolve-se à medida que o filme avança, culminando em uma revelação final que reformula tudo o que foi visto até então. Adelaide, que passa boa parte do filme fugindo de sua cópia, talvez nunca tenha sido exatamente quem pensávamos. Mais do que uma narrativa de horror, “Nós” propõe um dilema existencial inquietante: quem somos de verdade quando confrontados com aquilo que renegamos?

Jordan Peele constrói, assim, uma alegoria sobre a condição humana que vai além da estética do medo. O verdadeiro embate não se dá entre protagonistas e antagonistas claramente definidos, mas dentro de cada indivíduo, na luta contra as partes que a sociedade reprime, que a moral condena e que o inconsciente não ousa encarar sem estremecer. “Nós” não apenas se desenrola diante do espectador, mas se infiltra na mente como uma indagação incômoda e irrespondível: e se os monstros que tememos não estiverem lá fora, mas dentro de nós mesmos?

Filme: Nós
Diretor: Jordan Peele
Ano: 2019
Gênero: Mistério/Thriller
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★