A obra-prima da Netflix que certamente estará na lista dos melhores filmes de 2025 Divulgação / Netflix

A obra-prima da Netflix que certamente estará na lista dos melhores filmes de 2025

A trajetória humana é marcada pela necessidade de sepultar lembranças incômodas em compartimentos ocultos da memória, evitando que elas ressurjam e contaminem o presente. Algumas dores são tão profundas que permanecem inatingíveis, preservadas como cicatrizes invisíveis. Gunnar Sønsteby (1918-2012) compreendeu essa lógica e, desde 8 de maio de 1945, manteve cerrada a mais impenetrável de suas gavetas, onde repousavam os espectros de um dos períodos mais sombrios da humanidade, no qual ele, sem escolha, se viu envolvido.

John Andreas Andersen se lança na árdua tarefa de decifrar esse homem e sua trajetória em “Número 24”, um drama de guerra que transcende a mera reconstituição histórica. Inspirado na autobiografia do lendário resistente norueguês, o filme busca esmiuçar os meandros psicológicos de um herói que, na velhice, se vê confrontado com recordações que nunca desapareceram de fato. Andersen evita o didatismo e constrói um retrato fragmentado, compondo um mosaico de experiências que moldaram a consciência e os dilemas morais de Sønsteby.

O roteiro de Espen Lauritzen von Ibenfeldt e Erlend Loe nos conduz a Rjukan, uma pacata cidade do interior da Noruega, onde o jovem Sønsteby percorre trilhas nevadas, perdido em devaneios juvenis. Mas a aparente tranquilidade logo se desfaz. O avanço nazista sobre a Europa se materializa aos poucos, infiltrando-se não apenas pelos territórios conquistados, mas também nas mentes daqueles que, por ingenuidade ou oportunismo, acolhem a retórica distorcida do regime. Bibliotecas queimadas servem como metáfora de um apagamento cultural deliberado, prenúncio de tempos brutais que não tardam a alcançar a Noruega.

Em 1937, Hitler era apenas uma sombra inquietante sobre a política europeia, conquistando admiradores e arregimentando fiéis. Três anos depois, em 9 de abril de 1940, essa ameaça se concretiza: a ocupação alemã torna-se uma realidade tangível, transformando a vida de Sønsteby e de tantos outros jovens. Para o aspirante a contador, que até então levava uma rotina burocrática e previsível, o curso da existência se altera irrevogavelmente. Seu destino já não lhe pertence inteiramente. O dever o chama, e ele responde.

Andersen opta por um fluxo narrativo fragmentado, entrelaçando memórias dispersas e acontecimentos determinantes na vida do protagonista. A história se desenrola a partir de uma palestra ministrada por Sønsteby em sua antiga escola, um espaço onde o passado e o presente se confrontam. A montagem ágil permite um trânsito contínuo entre tempos distintos, revelando um personagem complexo, dividido entre convicções e fardos emocionais. Erik Hivju e Sjur Vatne Brean assumem a responsabilidade de dar vida ao protagonista, cada um trazendo nuances diferentes para as distintas fases do personagem. O jovem Sønsteby se debate entre a lealdade e a necessidade de resistência, enquanto o idoso carrega o peso irreparável de suas escolhas.

O filme se debruça sobre os dilemas éticos que marcaram a jornada do Número 24, codinome adotado pelo protagonista na Resistência norueguesa. Andersen não se esquiva dos aspectos mais tormentosos dessa narrativa: o preço da lealdade, a frieza necessária para sobreviver e as traições que reverberam como cicatrizes eternas. Entre esses fantasmas, ressurge a figura de Erling Solheim, amigo de infância que vendeu informações cruciais aos nazistas em troca de uma pequena fortuna. A trama introduz um elemento fictício, uma suposta sobrinha-bisneta de Solheim, cujo papel na narrativa amplia o alcance da reflexão moral do protagonista.

Nos momentos finais, Brean e Jakob Maanum Trulsen entregam ao filme um epílogo de carga emocional inescapável. O silêncio das gavetas trancadas não significa esquecimento; a dor preservada jamais se aquieta por completo. Há memórias que exigem ser revisitadas, pois continuam pulsando, incômodas e imortais, sob a superfície do tempo.

Filme: Número 24
Diretor: John Andreas Andersen
Ano: 2025
Gênero: Biografia/Drama/Guerra
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★