O ponto de partida de “Ferry” (2021) lança mão de um retorno ao passado para delinear as origens do protagonista e revelar os traços mais primitivos de sua personalidade. Em um recorte brutal da infância de Ferry Bouman, a cena inicial mostra um menino de dez anos, apavorado, escondendo-se do pai violento e alcoólatra. Sua irmã, ligeiramente mais velha, tenta fugir empunhando uma arma, enquanto a mãe implora ao marido que não agrida os filhos. No ápice da tensão, o garoto toma a arma da irmã e avança contra o agressor. Três anos depois, Wannes Destoop retoma o enigma sobre o destino desse menino e investiga a trajetória do gângster mais temido da Holanda, cuja infância foi marcada pela negligência de pais que preferiam apagá-lo da própria história.
“Ferry 2” dá continuidade ao que Cecilia Verhayden iniciou, revisitando os ecos do passado que ainda ressoam no protagonista. A trama nos reencontra em Brabant, no sul da Holanda, cenário de sua juventude, contrastando com a modernidade desenfreada de Amsterdã, onde ele tentou recomeçar. Agora, Ferry está diante de um impasse: sua vida financeira se deteriora, a culpa o consome e o peso de um crime irremediável ameaça soterrá-lo. O roteiro de Tibbe van Hoof e Geerard Van de Walle entrelaça essas angústias existenciais com a violência desmedida da guerra entre facções pelo controle da produção e distribuição de drogas sintéticas, um flagelo que se espalha sem distinção de território, corroendo até o Velho Continente.
Destoop emprega cortes ágeis e uma edição precisa para acentuar a atmosfera de instabilidade que paira sobre Ferry, que se vê encurralado entre inimigos implacáveis e suas próprias escolhas. Ele se move furtivo pelos becos de Brabant, espreita nas sombras e age com a destreza de um predador experiente. Sua estratégia se desdobra com precisão: uma tábua com pregos atravessa os pneus de um caminhão carregado de ecstasy, permitindo-lhe saquear a carga com a segurança de quem já executou ações desse tipo inúmeras vezes. Mas a crueza desse assalto é apenas um fragmento de sua jornada. O verdadeiro fio condutor do filme reside no inesperado relacionamento com Daniëlle, um vínculo que se forma sem artifícios românticos convencionais. Ao intervir para salvá-la de um ex-namorado abusivo, Ferry deixa entrever uma faceta sua que até então parecia inexistente, uma vulnerabilidade que reconfigura sua figura de criminoso impassível e que, por extensão, adiciona novas camadas ao enredo iniciado no longa de 2021.
A ascensão de Ferry no crime organizado segue um caminho quase inevitável. Ao se tornar executor de confiança de Ralph Brink, o influente chefão interpretado por Huub Stapel, ele passa de mero subalterno a peça-chave na estrutura mafiosa dos Países Baixos. O vínculo entre os dois vai além da conveniência do submundo: há em Brink um resquício de paternidade e, em Ferry, uma lealdade forjada pela necessidade de pertencimento. No entanto, essa fidelidade inquestionável, que se confunde com gratidão, também o conduz a decisões que aceleram sua ruína.
Quando o diretor revisita a operação do roubo de ecstasy, não apenas retoma a espinha dorsal da narrativa explorada na série “Undercover” (2019-2022) e no filme original, mas também reafirma a complexidade do personagem central. Frank Lammers, que dá vida a Ferry, entrega uma performance que ultrapassa os limites do estereótipo do criminoso insensível. Ele habita um universo onde brutalidade e emoção coexistem, sustentando a tensão entre o homem que sobrevive pela violência e aquele que, por mais que tente negar, ainda carrega resquícios de humanidade. Em última instância, muito do impacto de “Ferry 2” está na forma como o filme, por meio dele, desafia a visão simplista sobre o que realmente define um anti-herói.
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