Éramos quinze veteranos em regular estado de conservação. A gente ainda dava um caldo. Embarcamos na novíssima van do Calcinha para vencer os 150 km até a pequena e pacata cidade de Gueirobas da Serra, que sequer constava nos mapas oficiais. A cidade era ruim, mas, o povo, bom-até-mandar-parar. A ida dentro daquele coletivo foi silenciosa e tranquila. Afinal, tínhamos acordado às 5 da matina e estávamos sonolentos. O jogo comemorativo aos 70 anos do Rochinha estava agendado para começar pontualmente às 9. Ou não.
O membro mais juvenil do nosso time contava uns 45. A idade média dos atletas batia na casa dos 55, ou seja, um verdadeiro escândalo. Fomos recebidos com um escalafobético foguetório no trevo que dava acesso à cidadezinha. Um vira-latas desavisado teve um acesso epiléptico e trepidou na sarjeta, que nem frango destroncado, por causa do irritante estrondo dos fogos. Seguimos direto para o campo de grama sintética que seria inaugurado naquele sábado calorento, em prol dos festejos de aniversário do Rochinha, que era um sujeito muito bem-quisto naquela comunidade.
A temperatura desértica era de tirar pica-pau do oco. O sol rachava as moleiras. Dava para enxergar as ondas de calor tremeluzindo sobre piso emborrachado. Não deu um minuto de jogo, o Rochinha protagonizou um lance patético e, ao mesmo tempo, danoso, ao se machucar sozinho, pisando sobre a bola, abrindo o pente como se fosse um espacate de balé e rompendo o adutor da coxa direita. Qualquer tipo de contusão era plenamente concebível, considerando os 70 anos e os 98 quilos do Rochinha.
O artilheiro de priscas eras estatelou-se no piso fumegante que, àquela altura da manhã ensolarada, já sapecava as solas dos pés dos atletas, a despeito do uso de chuteiras. Carregamos o aniversariante contundido para fora das quatro-linhas, onde já chegou desmaiado. O jogo foi interrompido até que nós, leigos, os seus diletos amigos, concluíssemos o provável diagnóstico. Alguém com tirocínio e com mínimo de juízo requisitou a única ambulância existente na cidade para conduzir o artilheiro combalido até a unidade de saúde mais próxima.
Despejamos um balde de gelo moído nas costas do nosso camisa 9 e estapeamos a sua cara, que eram os únicos recursos legítimos e eficazes disponíveis à beira do campo, a fim de reanimar um atleta em estado deplorável. Rochinha despertou do breve apagão, cuspiu, pediu água, disse que se sentia bem e que não queria ser levado ao postinho porque tinha um churrasco aguardando por todos após o apito final do árbitro. Com a devida vênia, enfiamos o dito-cujo na ambulância que sumiu numa nuvem de poeira. Apesar do calor infernal e da consternação generalizada, o jogo prosseguiu, culminando num tedioso zero a zero.
Não havia chuveiros nas imediações. Entretanto, melhor do que ducha fria foi tomar banho de rio, uma diversão da qual não desfrutávamos há décadas, provavelmente, desde a quinta-série. Depois de nos refrescarmos, seguimos na van do efeminado Calcinha até a sede da fazenda, onde um farto regabofe nos aguardava. Betinho, o coveiro mor do cemitério municipal “Segura na Mão de Deus e Vai”, que era amicíssimo do Rochinha, a ponto de prometer, vejam só, quando chegasse o momento, enterrá-lo sob a sombra de uma frondosa gameleira, numa cova confortável devidamente situada entre as sepulturas das irmãs Jorgina e Santina, as prostitutas mais queridas e famosas de todos os tempos, trazia a informação de que o paciente passava bem, obrigado, não corria risco de morte e já manifestava o incontrolável desejo de tomar uma gelada com os convidados.
A festa estava empapuçada de gente. Dava a impressão de que os três mil e quinhentos habitantes de Gueirobas da Serra estavam ali presentes. Uma dupla de cantores sertanejos, com os cabelos arrepiados e as sobrancelhas feitas, sapecava um repertório musical torturante que eu realmente desconhecia, mas que, ao mesmo tempo, deixava os convivas bastante animados. De repente, a ambulância apontou no alto do mata-burro, trazendo o aniversariante claudicante, porém, disposto e sorridente. Rochinha foi ovacionado, chorou, fez discurso, elogiou a prefeita, os vereadores, os parentes, os amigos e aguentou o tranco até que a última soca de beberrões inveterados fosse convencida a retornar aos seus respectivos lares.
Como já era de se esperar, a viagem de volta durou o dobro do tempo. Alguém apareceu com uma caixa térmica abarrotada de cerveja. A maior parte dos veteranos já tinha superado, em muito, os tradicionais três-coqueirinhos-para-lá-de-Bagdá. O alívio pela recuperação do Rochinha era enorme e dava sede na turma. A resenha comia solta. As piadas pipocavam. A cantoria alegrava o ambiente. Contudo, a certa altura da catarse etílica, um dos companheiros achou por bem jogar cerveja nos demais. Apesar da euforia generalizada, ninguém gostou da brincadeira, muito menos, o Calcinha, que àquela altura da viagem, já tinha suportado com simpatia e bom humor os chistes homofóbicos.
Ele parou o veículo no acostamento da rodovia e decretou que não continuaria a viagem, se a chuva de cerveja continuasse. O companheiro responsável pela traquinagem, que em condições normais de temperatura e pressão era um sujeito extremamente amistoso e gentil, ficou alterado, vociferou, socou a poltrona e ameaçou partir pra cima sabia-se lá de quem. Estava bêbado demais para decidir. Acabou contido com facilidade. A vontade era grande, mas não dava para abandonar o encrenqueiro na beira da estrada. Amizade se praticava na alegria e na tristeza. No frigir dos ovos, a paz foi restabelecida, todos urinaram no matagal e a viagem prosseguiu sem novas arrelias.
Calcinha teve que parar outras vezes para aliviarmos a bexiga. Quando chegamos ao ponto de partida, na capital, já era tarde da noite. Recebemos uma ligação de vídeo do nosso querido Rochinha. Ele agradecia a presença de todos, dizia estar se sentindo muito bem, graças a Deus, e afirmava que tudo não passara de um susto. Por outro lado, as notícias de última hora, infelizmente, não eram boas. Betinho, o seu melhor amigo, o coveiro titular do cemitério municipal, tinha sofrido um colapso fulminante na boquinha da noite e batido as patacas. Portanto, aquele projeto de ser enterrado, em seu devido tempo, sob a sombra de uma gameleira, entremeado pelas irmãs Jorgina e Santina, as prostitutas mais famosas e queridas de Gueirobas da Serra, estava definitivamente sepultado. E não se falava mais no assunto.