Sou proustiano convicto, e fosse a língua alemã mais acessível, teria estudado Thomas Mann no doutorado, e não Proust. Ou talvez os dois, em um projeto dos sonhos, articulando a concepção de tempo narrativo e tempo da narração entre “Em Busca do Tempo Perdido” e “A Montanha Mágica”. Em São Paulo, arrisquei um curso de alemão instrumental, mas logo percebi que o buraco era mais embaixo: declinações e estruturas complexas não se vencem com facilidade. Ainda assim, mesmo em traduções, a grandiosidade de Mann é palpável, irrefutável.
Thomas Mann é um autor assustador em vários sentidos. Dizer que é mais consistente do que Proust não é algo que me saia facilmente, mas há mérito na afirmação. O conjunto da obra de Mann revela um projeto impressionante, audacioso em cada título, enquanto exibe regularidade impecável. Sua obra é vasta, monumental, livre de falhas significativas. Às vezes, tenho a impressão de que a personalidade difícil que ele possuía serviu para ocultar um pouco da mágica de sua criação. É um autor reverenciado, sim, mas não tanto quanto mereceria. O século 20 pertence não apenas a Proust, Joyce e Kafka, mas também a Thomas Mann.
Os projetos literários de Mann desafiam qualquer classificação simples. Em “Doutor Fausto” ele reescreve o mito de Fausto, transformando-o em uma reflexão crítica sobre a Alemanha e sua relação com o nazismo. Ele explora a profundidade do espírito humano. O livro é um emaranhado de erudição, técnica e emoção, mas equilibrado por uma arquitetura narrativa magistral. Não há excessos desnecessários, tudo se encaixa de modo cirúrgico. É literatura que exige comprometimento e atenção, mas recompensa o leitor com insights brilhantes.

Talvez seja esse o diferencial de Mann: sua habilidade de construir histórias reflexivas, mas ainda acessíveis a um leitor paciente. Em “A Montanha Mágica”, desafia as noções tradicionais de tempo e espaço, utilizando um cenário isolado como pano de fundo para questões existenciais que ressoam universalmente. Aqui, a estagnação e o avanço do tempo são elementos tão importantes quanto os próprios personagens. Essa fusão entre a estrutura narrativa e a filosofia é uma característica única que define sua literatura.
Mas é difícil ignorar como o próprio Mann é uma figura divisiva. Como Kafka, cuja vida foi marcada por tragédias e complexos psicológicos, ou como Proust, com sua reclusão neurótica, Mann é um personagem por si só. É quase uma ironia que alguém que escreve com tanta disciplina e clareza tenha sido uma figura tão controversa e muitas vezes insuportável. Mas isso não diminui em nada sua obra, apenas realça sua genialidade: a capacidade de transcender seus próprios defeitos pessoais e criar algo que permaneceu universal.
A solidão intelectual de Mann, fruto de sua autossuficiência, arrogância e prepotência, é ao mesmo tempo sua força e fragilidade. Ele sabia que pertencia a um seleto grupo para quem a literatura não era apenas arte, mas um espaço para refletir sobre a história, a cultura e o futuro da humanidade. Essa visão é evidente em “José e seus Irmãos”, uma obra de fôlego, cheia de simbolismos e reinterpretações míticas que vão além do óbvio. Poucos escritores poderiam abraçar com tanto êxito uma narrativa tão ambiciosa.
Nesse ponto, é inevitável pensar no que teria sido se Mann tivesse recebido a mesma atenção detalhada que Proust recebeu ao longo dos anos. Autores franceses sempre tiveram mais destaque internacional, e a complexidade da língua alemã certamente é um obstáculo, mas isso não justifica a ausência de Mann do cânone principal para tantos leitores ao redor do mundo. Ele deveria ser lido nas escolas e discutido nas academias de forma mais rotineira.
No aspecto técnico, a obra do alemão também se destaca. Seu domínio da narrativa longa é indiscutível. Cada romance é arquitetonicamente planejado, mas sem que esse planejamento tire o frescor do texto. “Os Buddenbrooks”, primeiro grande sucesso, mostra um autor maduro, capaz de contar a decadência de uma família com um nível de detalhe e sensibilidade que seria raro até nos melhores romancistas do século 19. Mann começou onde muitos já sonhariam chegar.
Joyce, Proust e Kafka são indiscutivelmente titãs do século 20, mas Mann não fica atrás. Talvez sua posição relativamente secundária se deva à sua aparente falta de tragédia pessoal, um contraste com a sensibilidade ultrarromântica que domina as figuras de Kafka e Proust, ou a de Joyce, sempre bêbado, falido, dependendo da caridade dos amigos que, além de admirá-lo, o suportavam também. Mas é essa ausência que permite que Mann brilhe, porque seu protagonismo está inteiramente em sua obra. Teve dramas pessoais, mas dramas que passaram ao largo de fazer de sua figura uma vítima incompreendida do destino. Pelo contrário, ele, com uma personalidade centralizadora, egoísta, fria, megalomaníaca e incapaz de sentimentos fortes por qualquer pessoa, fez suas vítimas. Klaus Mann, seu filho, que o diga.
De todas as qualidades que Mann possui, está a sua capacidade de ser universal, sem renunciar à densidade. Mesmo em um mundo globalizado, suas histórias têm relevância. “A Montanha Mágica” é um retrato da Europa do pré-guerra e uma narrativa intemporal sobre os limites humanos. Poucos autores conseguem construir algo assim.
Se há algo que Thomas Mann ensina é que a literatura é enfrentamento: conosco mesmos, com nossa história e nosso futuro. Enquanto isso, nós só temos que reverenciar autores como ele e Proust, que construíram obras que continuarão sendo interpretadas, estudadas e, principalmente, vividas por muitos séculos.
Thomas Mann, James Joyce e Franz Kafka ocupam um panteão literário que exige comparação, ainda que seja tarefa arriscada e limitada por diferenças fundamentais. Cada um encarnou um projeto literário distinto e inovador, moldando a literatura do século 20 de formas irreversíveis. Entre esses gigantes, Mann é o mais “clássico” e o mais sistemático, enquanto Joyce é o mais experimental, e Kafka, o mais enigmático e pessoal. Esse contraste é uma riqueza para a literatura, pois é na diferença que eles se completam, oferecendo visões complementares sobre o mundo moderno e suas crises.
Joyce, como Mann, foi um leitor apaixonado pelas tradições literárias ocidentais. Ambos dialogaram intensamente com o cânone, mas de maneiras distintas. Enquanto Mann incorporou as influências dos grandes mestres — como Goethe, Wagner e Schopenhauer — em um estilo sofisticado e arquitetônico, Joyce levou a intertextualidade ao extremo, transformando “Ulysses” e “Finnegans Wake” em autênticos quebra-cabeças literários, repletos de jogos de linguagem, referências ocultas e camadas de significado quase inacessíveis. A ousadia de Joyce em desconstruir a forma narrativa tradicional é admirável, mas sua obra exige um leitor quase especializado, o que restringe seu público. Mann mantém um equilíbrio mais inclusivo: suas obras são eruditas, mas acessíveis com esforço razoável.
Kafka difere de ambos por operar em um campo de ambiguidade radical. Sua literatura, marcada pela opressão, pelo absurdo e pela falta de sentido, é muitas vezes descrita como a materialização de um pesadelo existencial. Mann, com toda sua grandiosidade narrativa, tinha um projeto muito mais explícito e controlado; Kafka parece abrir mão desse controle, criando narrativas que desafiam continuamente nossas expectativas racionais. Não é que Kafka não tivesse técnica; sua simplicidade é calculada e devastadora. Porém, sua obra não oferece alívio, solução ou síntese. Onde Mann busca o universal e o harmônico, Kafka se deixa consumir pelo particular e pelo caos.
Joyce, Kafka e Mann também abordaram o tempo de maneiras radicalmente diferentes. Em Mann, o tempo é denso, prolongado e meditativo. “A Montanha Mágica” é uma prova de como ele transforma o tempo em matéria narrativa, estendendo cada momento ao máximo para explorar sua profundidade. Joyce, em “Ulysses”, também manipula o tempo, mas de forma fragmentada, ao comprimir um único dia em uma narrativa épica e multifacetada. Kafka descontextualiza o tempo, criando uma suspensão temporal que amplifica o desespero de suas narrativas. Em “O Processo” não sabemos quando ou onde os eventos se desenrolam exatamente, reforçando o absurdo existencial de sua visão.

Se há algo que aproxima Mann de Joyce é o rigor intelectual de suas obras, ainda que aplicado de formas opostas. Joyce, com sua estrutura caleidoscópica, força o leitor a um trabalho ativo de reconstrução narrativa. Mann exige uma leitura contemplativa e reflexiva, onde as camadas de significado emergem a partir da própria clareza de sua escrita. Um bom exemplo é a comparação entre “Ulysses” e “José e seus Irmãos”: o primeiro demanda atenção microscópica para decifrar as referências que Joyce insere como peças de um jogo hermético; o segundo desafia o leitor por sua vastidão e riqueza simbólica, mas nunca confunde ou afasta. Ambos são desafiadores, mas por vias diferentes.
Quando pensamos no legado de Kafka, a comparação com Mann toma um tom de contraste. Kafka foi o escritor do inacabado, das metáforas indefinidas, dos labirintos de significado que terminam em becos sem saída. Mann é o mestre do “todo”, um autor para quem cada detalhe deve se conectar ao conjunto. Essa diferença de método diz muito sobre suas visões de mundo. Para Kafka, o destino humano é essencialmente fragmentado e incompreensível. Já Mann parece acreditar que, mesmo em meio ao caos, a narrativa pode oferecer algum tipo de ordem ou clareza, um refúgio intelectual diante das tragédias da existência.
O humor também marca uma linha de divisão interessante entre os três autores. Mann, embora não seja um humorista, emprega ironia refinada e sutil, que confere à sua obra complexidade adicional. “A Montanha Mágica” mistura cenas de profunda seriedade com momentos cômicos que parodiam a intelectualidade europeia. Kafka tem um humor negro e desolador, ironia trágica que nos faz rir pelo desconforto que provoca. Joyce é lúdico e quase carnavalesco; seu humor é expansivo, mas inacessível devido ao seu intelectualismo extremo.
Mas onde Kafka e Joyce parecem rejeitar um compromisso direto com as normas da narrativa tradicional, Mann opera com uma disciplina que reforça sua autoridade literária. Isso não é um demérito para os dois primeiros, mas uma diferença essencial de postura frente à narrativa. Mann cria narrativas que são monumentos; Kafka, armadilhas existenciais; Joyce, labirintos.
É preciso admitir que Kafka e Joyce talvez dialoguem melhor com o leitor contemporâneo. Suas abordagens fragmentadas, angustiadas e experimentais ressoam com a sensação de desorientação que caracteriza o nosso tempo. Mann, com sua regularidade clássica e estruturada, pode parecer mais distante, menos visceral. Mas é exatamente nesse afastamento que reside sua grandeza. Enquanto Kafka e Joyce desconstruíram a literatura, Mann reafirmou seu poder de síntese, reconstruindo o humano e o universal com uma precisão sem igual.
No fim das contas, escolher entre Mann, Joyce e Kafka é mais exercício de preferência pessoal do que uma questão de mérito objetivo. Mann oferece a solidez de quem acredita na literatura como espelho da história e da cultura. Kafka e Joyce são mais imediatos na forma como capturam os terrores e complexidades da modernidade. Se há uma coisa que os três nos ensinam, é que a literatura do século 20 não se construiu sobre bases lineares ou homogêneas. Eles são diferentes em quase tudo, mas juntos compõem um mapa inestimável da mente humana e do espírito da modernidade.
O século 20 é um anfitrião injusto. Na festa de gala da literatura, a tríade Proust, Joyce e Kafka ocupa o centro do salão, sob os holofotes mais brilhantes, enquanto Thomas Mann, com seu fraque impecável e olhar erudito, parece ter sido esquecido em uma poltrona ao lado do piano — talvez por ser polido demais, coerente demais, grandioso demais para os delírios do modernismo. Mas não, Mann não é um espectador; ele é o maestro que rege a sinfonia subterrânea, aquele que escreve sinfonias enquanto os outros tocam solos virtuosos. Reduzir o século à tríade é como contar um épico sem o clímax — uma história belíssima, porém incompleta.
Mann deveria estar no pódio, onde a regularidade não é um crime, mas a coroação da grandeza. Ele é o gênio quieto que constrói catedrais literárias enquanto Joyce risca fogos de artifício na noite e Kafka, do alto de sua torre sombria, nos sussurra que o mundo é um labirinto sem saída. Mann nos oferece uma visão monumental do humano, uma ópera em prosa. Que injustiça é tratá-lo como “um dos”, quando ele deveria ser “o quarto”, completando não um tríptico, mas um quarteto fantástico que dança a música caótica do século 20. Proust tem sua memória, Kafka sua angústia, Joyce sua irreverência — e Mann? Mann é o coração, o fio de Ariadne que nos dá equilíbrio enquanto nos perdemos no labirinto da modernidade.
Derrubem o velho altar da tríade e construam uma nova geometria literária. Não somos a terra dos três — somos a terra dos quatro! Um século com Joyce, Kafka e Proust, mas sem Mann, é como uma mesa manca, um acorde dissonante, um quarteto sem um instrumento essencial. Declaro, das trevas de minha insignificância, que o século 20 não tem três vozes, mas quatro, ecoando em um coro perfeito e dissonante, simultaneamente clássico e subversivo. Thomas Mann não é apenas digno desse salão; ele é o chão de mármore que sustenta a dança. E que dança! Mann sempre soube que, em matéria de arte, o excesso é vício, mas a grandeza é virtude. O século é dele também, e que isso fique escrito — não em pedra, mas nas páginas de nossa memória coletiva.