Tem um filme na Netflix que vai tocar seu coração e deixar sua alma mais leve — e você provavelmente ainda não assistiu Divulgação / Netflix

Tem um filme na Netflix que vai tocar seu coração e deixar sua alma mais leve — e você provavelmente ainda não assistiu

Definir um filme sobre a infância como “encantador” pode ser um atalho perigoso para a banalidade, já que essa fase da vida carrega naturalmente tanto o deslumbre quanto a desilusão. No entanto, se essa for a métrica, “O Trem Italiano da Felicidade” se impõe como um espetáculo hipnótico, orquestrado por Cristina Comencini com a perícia de quem compreende que os sonhos infantis não existem isolados da dureza do mundo. Oriunda de um clã de cineastas habituados a mergulhar nos abismos da memória, Comencini recupera um episódio incômodo da história italiana, situando-o numa região onde as cicatrizes do passado não se apagam nem após séculos, camuflando angústias universais sob um verniz de peculiar melancolia.

Baseado no romance homônimo de Viola Ardone, publicado em 2019, e adaptado por Furio Andreotti e Giulia Calenda, o filme nos leva à Nápoles devastada do pós-guerra, guiando-se pela ótica de um menino de oito anos imerso num cenário de fome e desesperança. O resgate literário promovido por Comencini vai além do mero retrato histórico, funcionando como uma provocação que insiste em esgarçar feridas ainda sensíveis. Não à toa, Andreotti e Calenda também assinam o roteiro de “Ainda Temos o Amanhã” (2023), outra incursão pela Itália arruinada dos anos 1940, época que, mesmo transcorridas oito décadas, ainda ecoa nas fraturas do presente.

A infância, quando marcada pelo trauma, torna-se um campo fértil para dores que jamais se dissipam por completo, adormecendo apenas para ressurgir de maneira inesperada. “O Trem Italiano da Felicidade” se insere na tradição de cineastas como Fellini, em “Amarcord” (1973), e Bergman, em “Fanny e Alexander” (1982), mestres na arte de transformar recordações em narrativas pungentes que rejeitam o conformismo da superfície. A história se abre com a chegada de Amerigo Benvenuti, maestro consagrado, ao Teatro Dell’Opera di Roma para um concerto. O telefonema que recebe, informando sobre a morte de sua mãe, funciona como gatilho para uma viagem íntima ao passado, devolvendo-o ao menino franzino que um dia foi, cujo corpo magro e maltratado denuncia privações que nos ultrajam.

Para muitas mães solo, como Antonietta, interpretada com precisão por Serena Rossi, enviar os filhos no trem que os conduzia do miserável sul a famílias comunistas no norte era a única esperança de um futuro minimamente digno. A relação entre ela e Amerigo, vivido com assombrosa maturidade por Christian Cervone, sustenta um dos arcos mais ricos da narrativa. Entre momentos de um humor agridoce — como as histórias delirantes sobre comunistas devoradores de crianças — e a crueza da sobrevivência nas ruas, a história equilibra tragédia e lirismo sem concessões. Comencini mantém tudo em seu devido peso, sem sentimentalismos fáceis, apenas o pulso firme de quem entende que o passado nunca é só um lugar distante, mas um espectro sempre à espreita.

Filme: O Trem Italiano da Felicidade
Diretor: Cristina Comencini
Ano: 2024
Gênero: Coming-of-age/Drama
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★