Se Bridgerton e Orgulho e Preconceito são sua paixão, este romance histórico na Netflix é ouro puro Divulgação / Netflix

Se Bridgerton e Orgulho e Preconceito são sua paixão, este romance histórico na Netflix é ouro puro

Desafiar a autoridade paterna era um ato impensável no Reino Unido do início do século XIX, ainda que essa submissão irrestrita selasse destinos com uma rigidez avassaladora. Jane Austen (1775-1817) foi uma das escritoras que melhor capturou as sombras desse sistema, expondo em sua literatura a tensão entre dever e desejo, tradição e transgressão. Sua narrativa, distribuída em volumes que se entrelaçam como peças de um jogo meticuloso, desvenda a complexidade das relações humanas em uma sociedade onde a obediência era exigida e o afeto, por vezes, uma concessão calculada. Ninguém compreendeu com tanta precisão essa dialética quanto Austen e suas personagens, que, em essência, compartilham a mesma essência de quem as criou.

Seus romances não apenas registram os códigos sociais da época, mas os desnudam, expondo suas fissuras e contradições. Poucos escritores foram tão hábeis em transformar a ironia em arma literária, convertendo diálogos afiados em veículos para críticas sutis, mas cortantes. No entanto, seu reconhecimento não foi imediato. Somente muito após sua morte, em 18 de julho de 1817, Austen se consolidou como um dos pilares da literatura universal.

Hoje, sua influência ressoa até mesmo em projetos que não pretendem apenas homenageá-la, mas sim dialogar com seu legado. “A Lista do Sr. Malcolm” é uma dessas tentativas, e Emma Holly Jones, ao dirigir a adaptação da obra de Suzanne Allain, assume o desafio de capturar a elegância narrativa da autora britânica enquanto introduz nuances próprias, deslocando a clássica batalha entre classe e afeto para uma perspectiva inesperada.

A elite, em qualquer tempo ou geografia, desenvolve hábitos que os afastam do resto da humanidade, criando um verniz de distinção que os isola até mesmo de si mesmos. O medo da derrocada financeira ou social molda rituais, exigindo um constante esforço para preservar a ilusão da supremacia. Cercados por aliados estrategicamente posicionados e protegidos por um sistema que se reinventa para perpetuá-los no topo, aristocratas seguem pisando com leveza enquanto seus protetores garantem que a poeira jamais se assente sobre seus sapatos. Mas e quando essa coreografia meticulosa é confrontada por novas regras? “A Lista do Sr. Malcolm” coloca essa pergunta no centro da trama, ampliando o escopo da sátira social ao lançar luz sobre figuras que, na época de Austen, sequer teriam espaço para existir dentro dessa engrenagem narrativa.

Toda obra que flerta com a tradição de Austen deve, em alguma medida, prestar reverência a “Razão e Sensibilidade” (1811), “Orgulho e Preconceito” (1813), “Emma” (1815) e “Persuasão” (1817). Esses textos não são apenas marcos da literatura, mas arquiteturas cuidadosamente desenhadas sobre amores impossíveis, convenções que sufocam e expectativas que traem seus próprios idealistas. A versão cinematográfica de “A Lista do Sr. Malcolm” toma emprestado esse espírito, mas amplia a equação ao inserir figuras historicamente marginalizadas nesse tabuleiro.

O resultado pode parecer, à primeira vista, um anacronismo ousado, mas talvez essa seja a chave para desnudar as engrenagens do racismo: ao deslocar personagens negros e asiáticos para um ambiente literário que tradicionalmente os ignorou, a trama denuncia a arbitrariedade dessas exclusões. Sope Dirisu, como o lorde que dita exigências amorosas com um rigor próprio de sua classe, entrega um desempenho que compreende a leveza e a seriedade do jogo. E o resto? O resto é apenas um reflexo das estruturas que Austen, desde seu tempo, já sabia desvelar com precisão impiedosa.

Filme: A Lista do Sr. Malcolm
Diretor: Emma Holly Jones
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Romance
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★