Jep Gambardella, escritor de um único sucesso e habituado ao hedonismo, encontra-se na encruzilhada da idade madura, onde o encantamento que outrora tingia sua vida começa a desbotar. O que antes era um desfile de excessos e superficialidade agora se apresenta como um teatro de sombras que o persegue com perguntas incômodas. A frivolidade, que sempre lhe pareceu um estado natural das coisas, transforma-se em angústia. Mas Gambardella, tão astuto para capturar o vazio dos outros, não sabe como enfrentar o próprio. Esse vácuo existencial impulsiona “A Grande Beleza” a explorar os limites da ilusão e do desencanto, com seu protagonista oscilando entre a observação mordaz e uma tentativa frustrada de encontrar alguma fagulha de autenticidade.
Uma epifania insuspeitada se insinua na celebração de seu aniversário de 65 anos. Não é um rompante de consciência arrebatador, mas uma rachadura progressiva em sua carapaça cínica. Paolo Sorrentino, arquiteto dessa incursão vertiginosa, não apenas insere o espectador no universo rarefeito e decadente de seu protagonista, mas o obriga a percorrê-lo sem anteparos. Mestre em construir personagens cuja complexidade reside na contradição, o diretor molda Gambardella como um dândi desencantado, cuja farsa pessoal se espelha na grandiloquência estéril de sua Roma. Com sua assinatura inconfundível, Sorrentino compõe uma sinfonia visual onde o delírio e a melancolia se sobrepõem em camadas inextricáveis, evocando resquícios da Roma felliniana, mas sem que a referência atropele sua própria visão.
A festa de Gambardella reúne caricaturas do grande teatro social: socialites famélicas, magnatas que confundem poder com substância, intelectuais de verniz que tentam, sem sucesso, convencer a si mesmos de sua erudição. Entre eles, Dadina, a ex-editora do protagonista, cuja baixa estatura não é um detalhe gratuito, mas um elemento cuidadosamente utilizado para escancarar a pequenez real que permeia aquela fauna de aparências. Sorrentino insere Giovanna Vignola em pontos estratégicos desse labirinto de falsas promessas, e é no contraste entre sua presença e o vazio de suas interações que o filme revela sua vocação crítica. O retorno de Gambardella ao cotidiano, arrastado por jantares tediosos e encontros com figuras que só existem para si mesmas, apenas acentua a sua ruína interna: ele não se sente entediado porque Roma é fútil, mas porque sua própria futilidade já não lhe serve como anestesia.
Toni Servillo habita Gambardella com precisão cirúrgica, entregando um protagonista que flutua entre a mordacidade e o desamparo. Seu gestual, seu olhar, seu riso contido ou escancarado expõem as fissuras de um homem que se julga perspicaz demais para ser enganado, mas que passa a vida encenando um papel que não sabe abandonar. Daniela Ciancio compõe figurinos que o aproximam de figuras como Tom Wolfe e Gay Talese, escritores que souberam transformar o real em espetáculo — mas em Gambardella, essa estética serve apenas para reforçar sua própria distância de qualquer substância. Sorrentino, especialista em dissecar figuras masculinas de fragilidade latente, estrutura seu protagonista como alguém cujo verniz social se desfaz na medida em que ele próprio se recusa a sustentar a farsa.
Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2014, “A Grande Beleza” insere-se na trajetória autoral de Sorrentino, ao lado de títulos como “As Consequências do Amor” (2004) e “Aqui é o Meu Lugar” (2011), onde os temas da inadequação e da dor latente são revisitados sob diferentes matizes. O diretor se compraz nesse universo de desencanto e artifício, como também se vê no angustiante “A Mão de Deus” (2021), mas aqui ele e Umberto Contarello concentram-se em um exame quase obsessivo da estética enquanto conceito e simulacro. O roteiro reflete essa ambiguidade, e sua sofisticação resvala na erudição de Roger Scruton (1944-2020), que via na beleza um refúgio contra o totalitarismo ideológico. Sorrentino não se propõe a seguir esse caminho, mas seu texto ressoa com a percepção de que o belo pode tanto libertar quanto aprisionar.
Mais do que um retrato de um homem em crise, “A Grande Beleza” é uma observação minuciosa sobre os jogos de sedução e desilusão que sustentam um mundo fadado a se repetir. Não pretende ser uma dissertação filosófica, tampouco um manifesto sobre a decadência cultural, mas termina por tocar essas camadas com uma sensibilidade que desafia a categorização. A fotografia impecável de Luca Bigazzi transforma Roma em um palco de excessos e epifanias que se dissolvem no instante seguinte. Sorrentino não busca respostas definitivas — ele prefere deixar o espectador à deriva, tão fascinado e perdido quanto Gambardella em meio a seu espetáculo pessoal de esplendor e vazio.
★★★★★★★★★★