Motel Destino e a próxima nação brasileira Divulgação / Globo Filmes

Motel Destino e a próxima nação brasileira

Os filmes brasileiros vêm desenhando o melhor quadro dos acontecimentos recentes no país. Estão nas telas os sinais do que já ocorre, os sonhos embutidos nas cabeças das pessoas e também os delírios e as alucinações. O mais recente filme dessa onda é “Motel Destino” (2024), de Karim Aïnouz, que dá sequência a uma das carreiras mais sólidas hoje na produção nacional. Ainda mais pertinente é o olhar dele para uma história que se passa em Fortaleza, no Ceará, num universo muito particular. 

Aïnouz não está só nessa jornada de investigação e descoberta. Quem o acompanha são Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”), Walter Salles (“Ainda Estou Aqui”), Gabriel Mascaro (“Divino Amor”) e os “meninos” da produtora Filmes de Plástico (“Marte Um” e “O Dia que te Conheci”). A eles, se juntam as produções de séries para canais de streaming, como “Cangaço Novo” e “Os Outros”. Essas narrativas fornecem uma matéria prima para observar e pensar um país em mutação.

“Motel Destino” traz um apuro estético muito forte, com uma saturação de cores. Há pouca luz natural, e cria-se um clima irrealista. A deformação se acentua com a entrada em cena do espaço de um motel de beira de estrada, próxima das praias paradisíacas do Ceará. Mas não há nada ali de glamuroso. Apenas os personagens das novas classes populares que se esbaldam em festas improvisadas, em botecos e postos de gasolina, e esticam a noite para o prazer sexual num motel caindo aos pedaços.

O personagem Heraldo (feito por Iago Xavier) é um jovem do mundo hiper-flexível. Ele pode num momento estar no papel de um entregador de aplicativo e, em seguida, fazendo pequenos serviços para a chefe legal do tráfico de drogas. Pular do mundo legal para o ilegal virou uma questão de mera oportunidade e, sobretudo, de necessidade. Esse é o imaginário dos novos empreendedores, representados na figura do casal que comanda o motel: Dayana (feita por Nataly Rocha) e Elias (Fábio Assunção).

Heraldo pisou na bola com os companheiros do tráfico e buscou um refúgio no motel, onde os dois proprietários o acolhem com cordialidade. Elias é “homem cordial”, da tradição de Sergio Buarque de Holanda: tem uma relação afetiva e extremamente violenta com quem está em volta. E com a citação dos nomes, percebe-se a origem bíblica das escolhas. Um é o “arauto”, aquele que anuncia e traz as mensagens. O outro é o Elias, que vive no mundo da profanação e agoniza nessa situação.     

Em um tempo que o Brasil flerta com a ideia de pátria-cristã, chamam a atenção as fortes cenas de sexo de “Motel Destino”. Faz sentido ter a exposição grande de corpos nus na tela. Heraldo e Dayana são pessoas despidas de tudo. Não existem disfarces ou roupagens para dissimular as situações. A vida é nua, no sentindo também de que uma pessoa pode ser simplesmente executada. O homicídio deixa de ser um crime e se torna uma forma de corrigir infrações (consumo de drogas, suspeitas de adultérios).

Elias é um sujeito religioso que frequenta as missas de domingo. Trata-se da figura que barbariza de forma tranquila e é cordial temente a Deus. Nisso, ele lembra os personagens de “Contra Todos” (2003), de Roberto Moreira, que retratou a periferia da cidade de São Paulo em colapso. Aliás, essa é uma característica do cinema brasileiro contemporâneo: mergulhar nas patologias do espaço público. Pode ser a versão abjeta de “Tropa de Elite” (2007), de José Padilha, ou a complexa de “Os Inquilinos” (20090, de Sergio Bianchi.  

Um dos achados de Karim Aïnouz é ver a deterioração entrando pelo interior do país. “O Céu de Suely” (2007) mostra o retorno da Hermila ao Ceará. Nas primeiras cenas, ela rememora um encontro com o namorado, que ficou em São Paulo e é pai de seu filho. Mãe e filho estão num ônibus a caminho de “casa”. É lá que espera viver a tranquilidade interiorana. Como no final de “Central do Brasil”, a personagem busca o paraíso perdido no sertão. A diferença será a mudança de perspectiva ao longo da narrativa.

A cidade de “O Céu de Suely” é repleta de motocicletas e motoboys, o que a aproxima do modelo das grandes metrópoles. Essa figura é o trabalhador flexível e móvel bem ao gosto da globalização. Não existem mais homens que andam a cavalo e cuidam da lavoura e do gado. Estamos num ambiente de símbolos urbanos como a televisão e os telefones. Mas o que caracteriza o local é a estagnação, o girar em falso, o mesmo tempo morto que se vê no filme “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis.

A solução encontrada por Hermila é ir embora o mais rápido possível daquele marasmo, de preferência para um destino distante. O ponto chave do filme é a escolha de Hermila: fazer uma rifa na qual o prêmio é uma noite de sexo para o ganhador e usar o dinheiro para a viagem. Nesse ponto, a esperança se vai. Numa leitura alegórica, pode-se notar a alusão ao Brasil que se rifou todo durante a década de 1990. País que agora se encaminha para uma forma muito diferente de sua formação histórica.

Mas, e o que vem por aí? “Motel Destino é uma sinalização da próxima nação brasileira. Outra representação dessa mutação está em “Bacurau” (2019, de Kleber Mendonça Filho, que imagina sessões de execuções públicas de pessoas no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Em “Divino Amor” (2019), Gabriel Mascaro propõe enfim a existência da pátria-cristã que abole a festa de Carnaval e onde há consultas com um líder religioso no formato de delivery dos restaurantes fast food.