Sobressair-se em meio aos simples mortais, descobrir-se superior que a maioria das pessoas comuns que enchem a Terra, achar o elemento mágico que permite que subamos do rés do banal e do ordinário da condição humana mesma e revistamo-nos de uma aura mística qualquer, não propriamente transcendental, mas vigorosa o bastante para nos fazer passar de vis pecadores para um híbrido de santo, feiticeiro e mártir poderia ser a solução de muitos de nossos problemas, não fosse a evidente constatação que aponta que tal façanha logo haveria de provocar uma cornucópia de fenômenos menos esotéricos que indecorosos.
Florence Cathcart entende muito bem desses “fenômenos”, manifestações ditas de outro mundo que desencapam um fio de tensões de toda ordem, questionamentos filosóficos, elucubrações que respeitam direta e indiretamente à sociologia, o interesse súbito e nada cândido de velhas raposas e, claro, o assanho de falsos profetas, excitados por um malcontido desejo quanto a também conseguir sua parte de glória e poder às custas da perpetração de um obscurantismo criminoso e do triunfo sobre a razão e as liberdades individuais dos crédulos e desamparados.
“The Awakening” é uma dessas excelentes histórias sobre as tantas fraquezas que rondam o espírito humano e que encontram num ambiente de generalizados caos e melancolia o cenário perfeito para medrar e destruir. Nick Murphy situa seu filme na esteira da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quando o Reino Unido acusava a quase invencível letargia que resta após eventos dessa natureza. E ele tem muito a apresentar em seu primeiro trabalho.
Florence, uma autora e investigadora da Londres pós-guerra, caça não fantasmas, mas os vigaristas que tripudiam da boa-fé alheia.
Tarimbado, o roteirista Steven Volk recorre a uma eficaz cena de suposta incorporação, na qual falsos médiuns sentam-se ao redor de uma mesa e exercem seus truques mais rudimentares, como aspergir uma bexiga com sangue de galinha para simular a reação de um corpo físico à presença extrassensorial, e são combatidos por uma Florence cuja maleta guarda pós químicos e geringonças eletromagnéticas, bastante afiada também na retórica.
Paulatinamente, a personagem adquire contornos menos grandiloquentes e Florence surge em Rookwood, uma escola rural que lembra um palacete gótico privando apenas da companhia de Maud, vivida por Imelda Staunton, irretocável como a professora misteriosa e de maus bofes, Robert Mallory, um professor de história que amarga uma triste memória do fronte, e Tom, um garoto que passa as férias internado porque os pais estão na Índia. Florence, Robert e Tom protagonizam cada qual uma etapa da investigação do enigma que levou a pesquisadora a Rookwood, a morte de um aluno que, dizem, perambula pelas dependências do colégio assustando os viventes com sua carranca.
Graças a um desempenho seguro e persuasivo, Rebecca Hall concentra quase toda a potência de “The Awakening”, e Murphy sabe tirar ainda mais proveito do talento de sua estrela ao inserir Florence em ambientes onde vozes infantis escorrem pelas paredes de rocha e acessos de tosse inundam o espaço, em estimulantes correspondências com clássicos a exemplo de “O Bebê de Rosemary” (1968), de Roman Polanski, ou sucessos aclamados como “Os Outros” (2001), de Alejandro Amenábar. Volt, responsável pelo texto de “Ghostwatch” (1992), de Lesley Manning, o terror que fez explodir a audiência da BBC, faz uma revelação meio artificiosa no final, sem que isso empane o impacto de um segredo da anti-heroína, algo sobre um soldado que morrera em ação. Raras vezes um enredo justificou tanto a máxima que o diabo está nos detalhes. Mas Deus também está.
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