Nos anos 1920, revistas de papel barato invadiram o mercado com histórias que misturavam crime, fantasia e ficção científica, carregadas de uma violência quase visceral, apenas limitada pela estática da página impressa. Essas publicações, batizadas de pulp fiction, foram um manual de inversões morais para Quentin Tarantino, que mais tarde incorporaria essa herança ao título de seu primeiro grande filme. A partir dali, ele refinaria o absurdo e o grotesco já esboçados em “My Best Friend’s Birthday” (1987), um curta experimental em que roteirizou, dirigiu e atuou. Essa produção marcaria o início de uma filmografia moldada por diálogos afiados, uma estética caótica e o prazer incontrolável de provocar desconforto — ao menos até que o público voltasse à normalidade da sala iluminada e das pipocas frias.
“Pulp Fiction”, que no Brasil recebeu o subtítulo redundante de “tempo de violência”, não apenas deu um golpe na previsibilidade das narrativas hollywoodianas, mas também consolidou um novo paradigma estético e estrutural. Dizer que alterou o curso do cinema é quase insuficiente: se o escopo da análise for o século XX, poucos filmes foram tão definitivos. Mesmo décadas depois, a obra continua a humilhar os aspirantes a revolucionários audiovisuais, que tentam reinventar a linguagem sem sequer organizarem suas próprias referências.
A trama, que se desenrola em uma arquitetura circular de movimentos centrífugos e centrípetos, poderia se tornar um desastre narrativo caso estivesse em mãos menos hábeis. Mas Tarantino e Roger Avary souberam transformar cada sequência em um imã narrativo. O prólogo, com Pumpkin e Honey Bunny divagando sobre assaltos a diners, já entrega a fórmula: uma tensão progressiva mascarada por diálogos que oscilam entre o nonsense e a filosofia de boteco. O espectador é tragado para esse universo onde o trivial e o brutal coexistem sem aviso prévio, e onde as quebras narrativas são um recurso, não um tropeço.
Os demais personagens emergem desse embate moral torto dos ladrões interpretados por Tim Roth e Amanda Plummer. O filme, então, se infiltra nos interstícios do submundo, onde nada acontece por acaso. Aqui, Tarantino talvez tenha atingido o ápice de sua capacidade de fazer seus personagens falarem por ele. Cada diálogo é mais do que um mero artifício estilístico: é o próprio eixo condutor da história. Jules Winnfield e Vincent Vega, assassinos de aluguel interpretados magistralmente por Samuel L. Jackson e John Travolta, buscam uma maleta cujo conteúdo continua a gerar teorias até hoje. O que acontece no apartamento onde eles confrontam um trio de bandidos ineptos é um lembrete de que este não é um filme para os incautos. E ainda assim, mesmo com a morte rondando cada sequência, Tarantino nos obriga a acompanhar longas digressões sobre temas banais — como o suposto adultério de Mia Wallace ao aceitar uma massagem nos pés. São nessas fissuras da trama que a genialidade da escrita se revela.
Mia, vivida por Uma Thurman, domina os atos seguintes, eternizada pela cena em que precisa ser revivida com uma injeção de adrenalina no peito após uma overdose acidental. Esse momento sintetiza bem o que move “Pulp Fiction”: a colisão entre o absurdo e a precisão cirúrgica da mise-en-scène. A relação entre Mia e Vincent funciona como uma bomba-relógio emocional, um jogo de tensões que nunca se resolve completamente. Em contraste, Ving Rhames, no papel de Marsellus Wallace, se perde em aparições episódicas, servindo mais como um dispositivo para encaixar os segmentos do filme do que como uma presença de fato essencial.
Mas é na convergência dos personagens do prólogo e do epílogo que Tarantino mostra seu domínio absoluto da narrativa. Os mesmos matadores que abriram a história retornam para o desfecho, deixando claro que esta não é apenas uma obra de violência estilizada, mas uma construção meticulosa onde cada peça se encaixa para um impacto final irrecusável. “Pulp Fiction” não se encerra em uma única leitura: cada revisão oferece novas possibilidades interpretativas, reafirmando seu estatuto de clássico — não pelo peso do tempo, mas pela capacidade infinita de se reinventar na mente de quem assiste.
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