Poucas narrativas conseguem transformar uma viagem aparentemente mundana em uma experiência existencial tão rica quanto “Trem Noturno para Lisboa”. Dirigido por Bille August e inspirado no romance de Pascal Mercier, o filme inicia sua trajetória de maneira simples: um professor suíço, Raimund Gregorius (Jeremy Irons), abandona a rotina para seguir os rastros de um livro e de seu autor. No entanto, o que se desenha ao longo da história é um labirinto de memórias, identidade e reflexão sobre as marcas que o passado imprime no presente.
Ao salvar uma jovem do suicídio, Gregorius se depara com um livro escrito por Amadeu Prado (Jack Huston), um poeta e médico que desafiou a ditadura de Salazar. Fascinado pelas palavras do autor, ele parte para Lisboa em busca de respostas. O que inicialmente parece uma investigação sobre a vida de um desconhecido logo se revela uma jornada de autodescoberta, onde cada pista o aproxima não apenas do passado de Amadeu, mas também de uma compreensão mais profunda sobre si mesmo.
A estrutura do filme é um jogo de reflexos: leitor, autor e personagem se entrelaçam de forma que a fronteira entre ficção e realidade se dissipa. Gregorius não apenas interpreta a história de Amadeu, ele a vivencia, permitindo que o espectador experimente essa sobreposição de tempos e perspectivas. Billie August utiliza flashbacks com um refinamento que lembra às grandes obras do cinema, como “Cidadão Kane” e “O Poderoso Chefão”. No entanto, aqui a reconstrução do passado não serve apenas como exposição, mas como um convite imersivo para dentro da psique dos personagens.
A ambientação é outro elemento essencial para essa sensação de imersão. Lisboa é filmada com um olhar melancólico e contemplativo, suas ruas e edifícios parecem guardar ecos de histórias não contadas. A fotografia equilibra sombras e luzes de forma a traduzir visualmente os dilemas internos dos personagens. A trilha sonora, por sua vez, sutilmente conduz o espectador por essa jornada introspectiva, sem nunca se tornar invasiva.
O elenco de peso potencializa ainda mais a sofisticação da obra. Jeremy Irons entrega uma atuação de rara sutileza, conferindo a Gregorius uma dimensão humana que evita qualquer traço de caricatura. Seu personagem poderia facilmente resvalar para a monotonia do intelectual introspectivo, mas Irons confere-lhe uma inquietação palpável. Jack Huston imprime a Amadeu Prado a intensidade de um homem dividido entre paixão e dever, enquanto Mélanie Laurent encarna a juventude revolucionária com uma energia contida e magnética. Charlotte Rampling, Tom Courtenay, Bruno Ganz e Christopher Lee adicionam profundidade ao enredo, cada um trazendo nuances fundamentais para a narrativa.
Apesar disso, o ritmo pausado pode afastar aqueles que buscam um desenvolvimento mais dinâmico, e algumas transições entre presente e passado poderiam ser mais fluidas. O primeiro ato, em especial, apresenta momentos de exposição que poderiam ter sido trabalhados de forma mais sutil. No entanto, conforme a trama avança e as peças do quebra-cabeça emocional se encaixam, a imersão se intensifica, justificando cada escolha narrativa.
Além de uma história sobre um homem que segue os rastros de outro, “Trem Noturno para Lisboa” se revela uma reflexão sobre o impacto das vidas alheias na nossa própria existência. É um convite para pensar sobre destino, memória e as consequências das decisões que tomamos (ou deixamos de tomar). A viagem de Gregorius não é apenas geográfica, mas profundamente interior, levando tanto o protagonista quanto o espectador a confrontar as próprias incertezas. O filme provoca essa reflexão, transformando cada cena em um espelho da condição humana.
★★★★★★★★★★