Poucas figuras surgiram do submundo da indústria adulta com o peso simbólico de Linda Lovelace. Protagonista de “Garganta Profunda”, ela se tornou um ícone involuntário de um universo que mesclava glamour e exploração, fama instantânea e aprisionamento invisível. “Lovelace”, dirigido por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, propõe-se a reconstruir essa trajetória conturbada, mapeando o percurso de Linda da ingenuidade à desilusão.
A estrutura narrativa do longa espelha a fragmentação da própria vida da protagonista. Inicialmente, Linda surge como uma jovem de classe média presa a uma educação repressora, buscando escape no magnetismo de Chuck Traynor. O filme retrata esse encontro como um mergulho vertiginoso em um mundo de promessas e deslumbramento, logo corrompido por um ciclo de abuso e coerção. A construção desse arco, embora eficiente em sua progressão emocional, resulta em um esquema binário que simplifica uma trajetória essencialmente contraditória. O relato de Linda foi mutável ao longo dos anos, oscilando entre momentos de submissão, empoderamento e revisões tardias de sua própria narrativa.
Amanda Seyfried, inicialmente uma escolha inesperada para o papel, surpreende ao conferir densidade à personagem, equilibrando fragilidade e resistência com uma atuação detalhista. Peter Sarsgaard encarna Chuck Traynor com um carisma que torna verossímil sua capacidade de manipulação, transicionando gradualmente para a figura de algoz implacável. O elenco coadjuvante, que inclui Sharon Stone, Robert Patrick e James Franco, reforça a ambientação da década de 1970, incorporando tanto a ingenuidade do público quanto a indiferença sistêmica à exploração de Linda.
O maior trunfo de “Lovelace” está na tentativa de desconstruir a ilusão vendida pelo cinema adulto da época, expondo os bastidores de uma indústria que transformava mulheres em mercadorias sob a falsa promessa de liberdade sexual. Contudo, ao se apoiar exclusivamente em “Ordeal” — autobiografia de Linda que denuncia os abusos sofridos — o filme sacrifica outras camadas de sua história. A protagonista, ao longo da vida, ofereceu versões divergentes de sua experiência: em alguns momentos reforçou sua condição de vítima absoluta; em outros, reconheceu ambiguidades que não se encaixam na polarização simplista do filme.
Essa abordagem se reflete na estrutura narrativa. A reviravolta no meio do longa — que revisita cenas anteriores sob um prisma mais sombrio – sugere um jogo de perspectiva, mas no final reafirma uma leitura única e definitiva. O conceito de memória e revisão histórica, crucial para compreender Linda, poderia ter sido trabalhado com maior complexidade. Afinal, sua trajetória não foi uma linha reta de submissão à redenção, mas uma sucessão de contradições que desafiam qualquer versão definitiva dos fatos.
Ao encerrar com Linda promovendo sua autobiografia e se tornando uma voz contra a pornografia, “Lovelace” busca um fechamento categórico, mas sacrifica a incerteza que permeou sua vida. A verdade sobre sua história talvez esteja na interseção entre seus diferentes relatos — e não em uma versão única e absoluta. O filme acerta ao trazer visibilidade para os bastidores de uma indústria pautada pelo abuso, mas perde a chance de explorar as zonas cinzentas que tornariam sua reflexão ainda mais provocadora.
★★★★★★★★★★