Guerra e cinema compartilham um paradoxo inescapável: a necessidade de equilibrar brutalidade e narrativa, caos e estrutura, verdade e mito. Quando “Círculo de Fogo” (2001) estreou, Jean-Jacques Annaud se propôs a transformar a Batalha de Stalingrado — um dos momentos mais ferozes da Segunda Guerra Mundial — em um drama psicológico de precisão cirúrgica. A história, centrada no embate entre dois franco-atiradores, Vassili Zaitsev (Jude Law), o lendário sniper soviético, e Major König (Ed Harris), o estrategista alemão enviado para caçá-lo, prometia uma abordagem intensa e calculada da guerra. No entanto, ao mesclar esse duelo meticuloso com elementos convencionais do cinema de Hollywood, o filme dividiu opiniões. Aclamado por suas cenas de combate meticulosamente coreografadas e criticado por suas liberdades narrativas, “Círculo de Fogo” não apenas retrata uma batalha, mas também se torna palco de um embate simbólico entre o realismo e a ficção cinematográfica.
A comparação com “O Resgate do Soldado Ryan” (1998) é inevitável. Steven Spielberg redefiniu o realismo nos filmes de guerra, conduzindo o espectador ao coração do inferno da Normandia com um rigor técnico avassalador. Annaud, por sua vez, inicia seu filme com uma sequência igualmente visceral: soldados soviéticos aterrorizados tentam cruzar o Volga sob uma tempestade de bombas alemãs. O desespero da cena, com corpos despedaçados, gritos de dor e um senso de fatalidade iminente, espelha a intensidade do desembarque na Normandia. Mas há uma diferença fundamental entre os dois filmes. Spielberg, apesar de seu compromisso com o hiper-realismo, ainda insere uma estrutura narrativa clássica de heroísmo e sacrifício. Annaud, ao contrário, introduz um duelo psicológico, quase um jogo de xadrez entre predadores, onde a guerra se transforma em um embate individualizado entre dois atiradores isolados em meio aos destroços de Stalingrado.
No centro desse confronto, Vassili Zaitsev emerge como a figura de um herói moldado tanto pela guerra quanto pela propaganda. Pastorzinho dos Montes Urais, ele desenvolveu sua mira ao caçar lobos, um detalhe que o filme insiste em ressaltar como metáfora para sua nova função: caçar soldados alemães. Quando Danilov (Joseph Fiennes), um oficial político do Exército Vermelho, percebe o potencial propagandístico de Vassili, ele o transforma em um símbolo soviético, publicando relatos de suas façanhas e elevando-o ao status de lenda. Mas esse retrato do herói não é gratuito. A história de Vassili não é apenas a de um atirador talentoso, mas a de um homem que se torna peça de um sistema maior, uma engrenagem no maquinário ideológico da guerra.
Essa transformação não ocorre sem desafios. Os nazistas, percebendo o impacto moral do novo ídolo soviético, respondem enviando Major König, um franco-atirador experiente, aristocrático e impiedoso. Seu objetivo é destruir não apenas Vassili, mas também o mito em torno dele. A partir desse momento, o filme assume um tom mais intimista, construindo um jogo de paciência e inteligência entre os dois snipers. Annaud explora essa dinâmica com maestria visual, usando closes fechados, sombras e perspectivas que simulam a visão dos atiradores. Cada esquina bombardeada de Stalingrado se torna um potencial campo de emboscada, cada feixe de luz pode ser o prenúncio da morte. O duelo psicológico entre os dois homens reflete, em microescala, a própria luta entre a Alemanha nazista e a União Soviética: dois impérios apostando tudo em um embate de resistência e estratégia.
No entanto, se a precisão cinematográfica do duelo entre Vassili e König é um triunfo, o mesmo não pode ser dito do triângulo amoroso introduzido no filme. A relação entre Vassili, Danilov e Tanya (Rachel Weisz), uma miliciana judia, parece um elemento dissonante em uma narrativa que deveria ser sobre sobrevivência e tática. A tentativa de dar profundidade emocional ao protagonista se perde em um enredo que frequentemente resvala no melodrama. O ponto crítico dessa subtrama ocorre quando Danilov, ao perceber que Tanya ama Vassili, tem uma epifania bizarra: “Se o marxismo fosse verdadeiro, ela teria me amado”. Essa conclusão, além de implausível, banaliza o contexto político profundo no qual o filme se insere. Em vez de um questionamento filosófico ou ideológico, a frase soa como um pretexto narrativo mal justificado.
A recepção do filme foi particularmente dura na Alemanha. Muitos críticos apontaram para sua estilização excessiva e seu distanciamento da autenticidade histórica. O fato de que “Círculo de Fogo” foi financiado com dinheiro alemão, mas trouxe um elenco majoritariamente britânico e americano, reforçou a sensação de que a história havia sido apropriada por Hollywood. Ed Harris, como König, e Jude Law, como Vassili, entregam atuações competentes, mas há algo deslocado em assistir à recriação de Stalingrado com protagonistas estrangeiros em um conflito essencialmente europeu. Além disso, o roteiro de Alain Godard e Jean-Jacques Annaud se baseia livremente no livro de não ficção “Enemy at the Gates”, de William Craig, mas toma tantas liberdades criativas que se afasta da realidade documentada. Para os que esperavam um relato fiel dos eventos, isso foi um fator de decepção.
Ainda assim, “Círculo de Fogo” tem seus méritos. Suas cenas de batalha são visualmente arrebatadoras, transmitindo o horror e a grandiosidade de um dos momentos mais cruciais da Segunda Guerra. A reconstrução de Stalingrado, com sua arquitetura em ruínas e sua atmosfera opressiva, é um triunfo visual. O duelo entre Vassili e König mantém a tensão elevada até o último instante, provando que a guerra pode ser tão psicológica quanto física. Annaud, apesar de suas concessões narrativas, consegue capturar a essência de um conflito que não era apenas uma disputa territorial, mas uma luta de ideologias e resistência.
Mas talvez a questão central não seja se “Círculo de Fogo” errou ao adotar um viés mais hollywoodiano, e sim por que esse tipo de escolha incomoda tanto. Filmes de guerra sempre oscilaram entre o compromisso com a precisão histórica e a necessidade de criar um espetáculo cinematográfico que envolva o público. Se “O Resgate do Soldado Ryan” conseguiu equilibrar esses dois aspectos, “Círculo de Fogo” opta por pender mais para o entretenimento, mesmo que isso signifique sacrificar parte da complexidade do evento que retrata. O que permanece é uma narrativa que, apesar de suas falhas, ainda prende, emociona e imortaliza um episódio brutal da história em um duelo onde cada disparo ressoa não apenas no campo de batalha, mas na própria memória coletiva da guerra.
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