Maria Callas (1923-1977) nunca teve vocação para a timidez. A “garotinha grega”, como a chamava Aristóteles Onassis (1906-1975), seu grande e conturbado amor, conheceu a miséria ainda na infância em Manhattan, onde nasceu filha de imigrantes helênicos. A despeito de um percurso marcado por obstáculos e desafios implacáveis, tornou-se a mais influente intérprete da ópera no século XX. Mas a grandiosidade tem um custo, e o dela foi alto demais: a voz que revolucionou a cena lírica pagou com a solidão e o desgaste emocional por cada nota que ousou desafiar o estabelecido. O olhar de Pablo Larraín sobre essa trajetória, em “Maria”, evita o clichê das biografias convencionais e mergulha em um retrato que questiona os limites entre realidade e projeção, construindo uma narrativa tão onírica quanto pungente sobre a ruína e a imortalidade da artista.
Larraín, sempre propenso a experimentações narrativas, se distancia das abordagens tradicionais para entregar uma interpretação subjetiva do mito Callas. Se “O Conde” (2023) brincava com os horrores da ditadura chilena em um delírio gótico e “Neruda” (2016) reformulava a imagem do poeta por meio de especulações provocativas, aqui ele leva essa liberdade ao extremo. Com o roteiro de Steven Knight, o filme encena episódios hipotéticos, por vezes delirantes, mas de uma plausibilidade inquietante. O jogo é claro: não se trata de reconstituir, mas de insinuar. Angelina Jolie encarna a soprano como um fantasma em seu próprio tempo, flutuando entre a fragilidade física e a majestade inquebrantável. A ilusão é reforçada pelo detalhe da sincronização labial, inicialmente desconcertante, mas logo absorvida pelo efeito quase ritualístico das cenas em que Callas parece cantar não apenas com a voz, mas com toda a sua existência.
O filme desliza entre tempos, conduzindo o espectador por fragmentos da glória de Callas, em performances que ressoam como despedidas antecipadas. Um dos momentos mais simbólicos acontece quando a soprano entoa “Ave Maria”, de Verdi, como se resumisse ali toda a sua travessia. Mas a dimensão etérea da diva se dissolve quando a narrativa a fixa em sua residência parisiense nos anos finais. Cercada por empregados que lhe oferecem um afeto reverente, ela busca, entre os gestos cotidianos, uma confirmação de sua própria grandeza. A relação com Bruna (Alba Rohrwacher), a governanta, ganha nuances delicadas, em especial na cena em que Callas busca a sinceridade da funcionária sobre sua voz. Paralelamente, Ferruccio (Pierfrancesco Favino), o mordomo, move um piano enquanto luta contra dores lombares, numa ironia cruel que contrapõe o peso da arte à vulnerabilidade do corpo.
Mas Larraín não se contenta em retratar a diva em seu refúgio doméstico. A presença constante de Mandrax, um jornalista imaginário que persegue Callas por onde quer que vá, adiciona um elemento de tensão surrealista. Ele encarna não apenas a obsessão da mídia, mas também os fantasmas internos que a soprano carregava consigo. O nome não é aleatório: remete à substância presente nos comprimidos que ela consumia em busca de alívio. Essa figura espectral a acompanha em passeios por Paris, entre restaurantes que visita não para se alimentar, mas para reafirmar seu estatuto de entidade admirada. É nessa relação entre realidade e devaneio que o filme encontra sua potência máxima, desdobrando-se como um estudo sobre a ilusão do estrelato e a impossibilidade de se desvencilhar daquilo que se tornou parte do imaginário coletivo.
Larraín costura essa miragem com a ajuda de um elenco que abraça a proposta com convicção. Kodi Smit-McPhee interpreta Mandrax como uma sombra elegante e impiedosa, enquanto Haluk Bilginer dá a Onassis um ar de maldição irremovível, um espectro tão real quanto o próprio passado que Callas nunca conseguiu deixar para trás. E é nessa prisão invisível que reside a força do filme. Ao fim dos 123 minutos, fica a impressão de que Callas foi mais do que uma voz prodigiosa: foi um eco perpétuo de algo inalcançável, uma figura que nunca se despediu completamente. No momento em que sua irmã Yakinthi (Valeria Golino) implora para que ela feche a porta do passado, o filme sutilmente sugere que talvez certas existências sejam condenadas a nunca encerrá-lo. Um destino reservado apenas àqueles que transcendem o próprio tempo.
★★★★★★★★★★