Tendo Lisboa como cenário, filme hipnotizante sobre solidão e autoconhecimento é um pequeno diamante que acaba de chegar ao Prime Video Divulgação / Film1

Tendo Lisboa como cenário, filme hipnotizante sobre solidão e autoconhecimento é um pequeno diamante que acaba de chegar ao Prime Video

Talvez ainda demore algum tempo, mas há de chegar o dia em que anjos descerão à Terra, mandados por Deus, para averiguar como estamos nos saindo antes de termos nosso destino selado. No altar, o padre quer saber se aceitamos aquele ou aquela ao nosso lado, do jeitinho que ele ou ela é. Como se não fosse o bastante, o sacerdote  diz-nos que devemos permanecer juntos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amarmo-nos e respeitarmo-nos até o último dia, até que a morte nos separe. É demais. Há quem não aguente a pressão e literalmente fuja, como faz Raimund Gregorius, o protagonista de “Trem Noturno para Lisboa”. Gregorius é um professor de filosofia que não consegue decidir-se entre o niilismo e o hedonismo, até ser atropelado por uma garota, bela e misteriosa, prestes a jogar-se de uma ponte. Desse momento em diante, Bille August, cujo “Pelle, o Conquistador” (1987) foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, sai de cena e deixa que seus personagens falem por si sós.

Todos erramos e não há problema algum nisso. Os tantos inesperados da vida quase sempre nos flagram em circunstâncias de fragilidade, cada qual com o seu peso e a sua medida, em que somos acareados com o melhor e o pior de nós mesmos — e é nessa hora em que vemos o quanto de verdade existe nesta pessoa que nos arrosta todos os dias ao espelho, com a qual esbarramos mil vezes por segundo no retiro soturno de nossos pensamentos mais desconhecidos, mais obscuros, mais vis. Uma abjeção se nos impõe e nos domina, malgrado nunca deixe de haver gente que jure que tal sensação não passe de assaltos de uma mente perturbada a indivíduos emocionalmente prosaicas, incapazes de enxergar a profundidade fundamental que compõe todas as coisas, mormente, por óbvio, as relações humanas. 

Pessoas como Gregorius são obrigadas a entender, desde muito cedo, que a vida não lhes reserva a genuína essência das coisas, mas só um caldo ralo e frio, temperado pela eterna ira que pontua a existência de todos nós em maior ou menor intensidade. Para indivíduos assim, afetos têm a natureza de algo que se quebrara há bastante tempo, mas que resiste, apoiando-se na areia colorida da farsa, que vai tragando e perdendo tudo. Baseado no livro homônimo do filósofo suíço Peter Bieri (1944-2023), o roteiro de August e Ulrich Herrmann concentra-se acertadamente na figura tíbia do personagem central, que persegue a moça até a capital lusitana, onde dá início a uma jornada de autoconhecimento com direito a um flashback metafísico onde encontra uma figura que o convence de que tem muita lenha para queimar. Charmosos, Jeremy Irons e Mélanie Laurent enganam o público em mais uma das sofisticadas trama de August, que dizem muito até nos tantos silêncios.

Filme: Trem Noturno para Lisboa
Diretor: Bille August
Ano: 2013
Gênero: Romance/Suspense
Avaliação: 8/10 1 1
★★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.