Imagine um filme dirigido por Tarantino e escrito pelos irmãos Coen — agora pare de imaginar e assista on-demand no Prime Video Divulgação / California Filmes

Imagine um filme dirigido por Tarantino e escrito pelos irmãos Coen — agora pare de imaginar e assista on-demand no Prime Video

Num mundo degenerado, vítima de uma incessante contaminação por pensamentos teratológicos de todas as categorias, de valores apodrecidos pela influência maléfica de quem deveria dar o exemplo, ainda cabe falar-se em moralidade, decoro, decência, ou isso é, agora mais do que nunca, coisa para sonhadores, ingênuos, palermas? Essa é uma das perguntas que Rod Blackhurst levanta em “Caminhos de Sangue”, um neo-noir com muito da estética do gênero que pega o espectador pelo contrapé. 

Blackhurst parece ter se inspirado em alguns dos excelentes trabalhos de David Fincher, Quentin Tarantino, James Foley e Martin Scorsese, tratando de imprimir personalidade a seu longa por meio de um anti-herói que luta com todas as suas forças para escapar da perdição, mas que também só precisa do motivo mais banal para jogar-se com tudo na cova dos leões. Blackhurst e o corroteirista David Ebeltoft despejam sobre Cliff, o personagem central interpretado por Scoot McNairy, reflexões de um marido e pai de um filho com câncer que começa a render-se às evidências e se convence de que talvez seja válido praticar um malfeito por alguém que ama. Ainda que as consequências sejam imprevisíveis.

É 1992, e no extremo norte dos Estados Unidos criminosos traficam drogas e armas pela fronteira com o Canadá. Cliff é um vendedor ambulante de desfibriladores cheio de amigos de conduta duvidosa, embora costume frequentar a igreja com a esposa Amy, de Nora Zehetner, onde encontra consolo sincero para seu lamento.

Blackhurst entra na porção humana, demasiado humana do protagonista ao mostrá-lo festejando uma boa venda numa boate de striptease, como se não devesse nada a quem quer que seja, e esse fosse um assunto entre Deus e ele, no qual ninguém tem o direito de meter-se. Imagens como essas embaçam a ideia que fazemos dele, mas o diretor só vira a chave do Cliff ambivalente e de ética escorregadia para um sujeito com que deve-se tomar cuidado ao incluir na trama Ricky, um estroina que sempre guarda no rosto um sorriso e na boca uma lábia capaz de persuadir qualquer um de qualquer coisa. Ricky o interpela com uma proposta sobre ser mula de um cartel local, levando armas até o território canadense, onde as trocaria por entorpecentes. Eles selam a parceria.

É claro que se tudo desse certo, a história teria chegado ao fim — e “Caminhos de Sangue” não teria esse título. Por algum tempo, o filme lembra um “Rio Congelado” (2008), o avassalador drama de família dirigido por Courtney Hunt numa versão macho movie. Blackhurst sabe, todavia, como preservar a atmosfera de mistério e lugubridade, contando com a química entre McNairy e Kit Harington, na pele de um Ricky que abandona aos poucos seu temperamento solar e cede espaço a sua natureza destrutiva e predatória, uma espécie de Travis Bickle redneck. Há uma saborosa nostalgia nesse longa duro e tecnicamente perfeito, que alude também a “Taxi Driver” (1976) em seu niilismo, mas nunca torna-se refém de suas inspirações.

Filme: Caminhos de Sangue
Diretor: Rod Blackhurst
Ano: 2023
Gênero: Ação/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★
Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.