No Chile dos anos 1950, um crime que poderia ser mais um caso rotineiro nos anais da justiça se desdobra em um caso de opressão, identidade e anseios reprimidos. A trama se infiltra na rotina de Mercedes, secretária submersa nas convenções que ditam sua existência, e acompanha sua inesperada conexão com o julgamento de uma mulher acusada de assassinar o amante em um hotel luxuoso. O que começa como um crime de solução aparente se converte em uma análise profunda sobre os ecos psicológicos e sociais de um ato de ruptura.
Sob a direção meticulosa de Maite Alberdi, a narrativa privilegia enquadramentos apertados e uma fotografia repleta de texturas, instaurando uma atmosfera onde o desconforto se alia às faíscas de emancipação. Mercedes, até então figura discreta entre registros e relatórios, encontra na história da ré um reflexo de seus próprios silenciamentos. Quando surge a chance de ocupar temporariamente o apartamento da escritora acusada, ela se entrega a uma existência que nunca lhe foi permitida.
O mergulho naquele espaço não é apenas um desvio da rotina, mas um encontro com uma vida que lhe parecia inalcançável. O toque do cetim de um vestido refinado, o tempo dilatado de um banho sem pressa, a liberdade de ocupar um cômodo sem justificativas transformam-se em experiências revolucionárias. A interpretação de Elisa Zulueta traduz essa metamorfose com uma fisicalidade sutil, onde cada gesto carrega a carga de anos de contenção. O contraste entre sua existência ordinária e a fugaz apropriação desse espaço evidencia a asfixia de seu cotidiano: no lar, uma presença funcional; no trabalho, uma peça substituível; no apartamento da escritora, um ser pleno, ainda que por um breve intervalo.
O filme evita o voyeurismo sensacionalista tão comum em narrativas criminais e se desvia da exploração dos aspectos sórdidos do caso. Não se trata de julgar culpa ou inocência, mas de expor a rigidez de estruturas que cerceiam as mulheres e explorar as brechas que elas encontram para afirmar sua existência. A abordagem feminista permeia o filme sem a necessidade de discursos panfletários: a política está nos gestos, nos olhares, na apropriação silenciosa de espaços que a sociedade insiste em lhes negar.
A presença de Mercedes é efêmera naquele apartamento, mas suas ações deixam marcas imperceptíveis: a água que tocou sua pele evapora, mas as plantas que regou seguirão crescendo. Nesse detalhe aparentemente banal reside a essência do filme: a confirmação de que pequenos atos de autonomia são capazes de redefinir existências inteiras.
★★★★★★★★★★