A Europa vivia dias de inquietação e incerteza naquele setembro de 1939. O ataque alemão à Polônia, no primeiro dia do mês, dissolveu qualquer ilusão de estabilidade e precipitou um conflito de proporções devastadoras. Apenas dois dias depois, a Inglaterra oficializou sua entrada na guerra, e, de um instante para outro, milhões de pessoas tiveram suas rotinas dilaceradas por sirenes estridentes, máscaras de gás e a iminência de bombas cortando os céus. Entre esses tantos, encontrava-se Sigmund Freud (1856-1939), o austríaco já consagrado por suas teorias sobre o inconsciente, mas que se via agora duelando não apenas contra o avassalador colapso da civilização europeia, mas também contra um câncer de laringe que minava suas forças. Apesar disso, mantinha-se impassível — até ser confrontado por um visitante cujas ideias o desafiariam de maneira singular.
“A Última Sessão de Freud” não se trata de uma consulta convencional, mas de um embate intelectual entre dois homens com percepções antagônicas sobre Deus, espiritualidade e a natureza da existência. O longa, dirigido por Matthew Brown e adaptado da peça de Mark St. Germain, explora o encontro especulativo entre Freud e C.S. Lewis (1898-1963), escritor e apologista cristão que, anos mais tarde, daria vida a “As Crônicas de Nárnia”. O que se desenrola não é apenas um diálogo entre mentes brilhantes, mas uma coreografia de provocações e contrapontos que revelam as camadas mais profundas das convicções de cada um.
Freud tornou-se figurinha carimbada no imaginário popular, a ponto de qualquer ator de feições sérias e cabelos grisalhos sentir-se apto a encarná-lo. Mas poucos possuem a densidade necessária para traduzir a complexidade do homem por trás da teoria. Anthony Hopkins se impõe justamente por evitar as armadilhas do lugar-comum, compondo um Freud abrasivo, um cético que não se permite fraquejar, mas cujo sarcasmo se revela menos uma expressão de arrogância do que um último gesto de resistência contra o inevitável. Em um mundo onde seu nome tornou-se alvo de debates atravessados pelo politicamente correto e pela obsessão por revisões históricas, a interpretação de Hopkins devolve ao personagem a espessura psicológica que tantos tentam reduzir a estereótipos.
O roteiro conduz o duelo intelectual entre Freud e Lewis equilibrando o rigor filosófico com a dinâmica de um embate pessoal. A fotografia acentua a atmosfera de clausura, enquadrando os personagens como gladiadores num anfiteatro sem público. Se Freud é o combatente experiente, ferido mas irredutível, Lewis surge como um adversário inesperado: um crente que não se contenta com dogmas superficiais e que sabe golpear com palavras afiadas. Matthew Goode o interpreta com uma contenção que torna sua fé ainda mais implacável, um contraponto perfeito para o sarcasmo metódico de Hopkins.
A discussão entre os dois, porém, não ocorre em um vácuo. A guerra, sempre presente nos noticiários e no terror das ruas, paira sobre os personagens como um lembrete inescapável da fragilidade humana. O Blitz, que em breve transformaria Londres em um cemitério a céu aberto, já dá seus primeiros sinais, e essa iminência de destruição adiciona camadas de urgência à conversa. As explosões que virão estão ausentes da tela, mas não do subtexto: o mundo desmorona, e ali estão dois homens tentando entender o significado de tudo isso.
Freud, que passou a vida desvendando os labirintos da mente, mostra-se incapaz de conciliar sua razão com suas dores. Entre tragédias históricas e perdas pessoais, sua descrença é o que lhe resta. A morte de sua filha Sophie, vítima da gripe espanhola em 1920, não o fez renegociar com Deus; pelo contrário, fortaleceu sua convicção de que o universo é regido pelo caos. Mas, paradoxalmente, ele ainda acaricia sua foto como se buscasse um significado que sua própria lógica não pode oferecer.
O grande triunfo de “A Última Sessão de Freud” é sua habilidade de tornar conceitos abstratos palpáveis, permitindo que o espectador transite entre o ceticismo e a fé sem que precise escolher um lado definitivo. No fim, mais do que um embate entre crença e dúvida, o filme revela-se uma investigação sobre o que significa ser humano diante do absurdo. Quando as palavras se dissipam, resta apenas o silêncio — e talvez seja nele que se esconda a verdadeira resposta.
★★★★★★★★★★