Vencedor do Oscar 2024 e da Palma de Ouro em Cannes, um dos melhores filmes do último ano está no Prime Video Divulgação / France 2 Cinéma

Vencedor do Oscar 2024 e da Palma de Ouro em Cannes, um dos melhores filmes do último ano está no Prime Video

Desde os primeiros minutos de “Anatomia de uma Queda”, torna-se evidente que o filme de Justine Triet, coescrito com Arthur Harari, transcende a mera investigação criminal. A narrativa se inicia com a morte aparentemente acidental de Samuel, professor e escritor em declínio, cujo corpo é descoberto pelo filho, Daniel, um garoto de onze anos com deficiência visual. No entanto, essa é apenas a superfície visível da trama; a verdadeira investigação se desenrola na intricada teia de relações interpessoais, desilusões e ressentimentos que sustentam um casamento em ruínas. A queda física de Samuel funciona como uma metáfora potente para a fragilidade humana, a instabilidade dos vínculos afetivos e a ilusão de controle sobre a própria existência.

Um dos grandes méritos da construção narrativa de Triet é transformar o tribunal não apenas em um palco para debates jurídicos, mas em um espaço de reflexão filosófica sobre a natureza da verdade e suas limitações. O filme expõe como aquilo que chamamos de “fato” é, na prática, uma construção subjetiva, moldada pelas percepções individuais, pelos desejos ocultos e pelas convenções sociais. Essa abordagem se distancia dos paradigmas do cinema hollywoodiano, no qual os tribunais frequentemente servem como palco para revelações impactantes e verdades incontestáveis. Em “Anatomia de uma Queda”, o espectador é confrontado com o desconforto da incerteza, percebendo que a realidade factual, por si só, não é suficiente para esclarecer os mistérios mais profundos da condição humana.

Sandra, interpretada com notável complexidade por Sandra Hüller, surge inicialmente como uma figura convicta e transparente, cuja inocência parece inquestionável. Contudo, à medida que o julgamento avança, sua personalidade é exposta de maneira implacável, revelando inseguranças, ressentimentos e comportamentos ambíguos que semeiam dúvidas crescentes. A atuação de Hüller transcende qualquer clichê de personagem ambígua, criando uma protagonista cuja humanidade desconcertante é simultaneamente seu maior trunfo e vulnerabilidade. O roteiro amplifica essa ambiguidade ao utilizar trechos dos próprios livros de Sandra como peças de acusação, sugerindo que até mesmo a literatura pode se voltar contra seu autor em um tribunal onde tudo é passível de interpretação.

A presença central de Daniel, vivido por Milo Machado Graner em uma interpretação surpreendentemente madura, reforça a complexidade narrativa do filme ao simbolizar a obsessão humana por certezas — uma busca frequentemente condenada ao fracasso. Sua cegueira física ecoa metaforicamente sua incapacidade de enxergar a verdade em meio a versões conflitantes. Forçado a confiar em memórias fragmentadas e discursos distorcidos pelo tribunal, o garoto se vê dilacerado entre a lealdade à mãe e a necessidade visceral de compreender o destino do pai. Dessa forma, Daniel se torna um espelho do espectador, perdido entre as múltiplas perspectivas que se sobrepõem sem nunca se conciliar completamente.

Outro aspecto essencial da abordagem de Triet reside na crítica sutil, mas incisiva, às dinâmicas de poder que permeiam os relacionamentos contemporâneos. Samuel não é apenas uma vítima passiva; seu ressentimento em relação ao sucesso profissional da esposa expõe uma crise latente da masculinidade moderna. Durante o julgamento, a promotoria manipula a sexualidade de Sandra como argumento de acusação, uma estratégia que não apenas reforça preconceitos enraizados, mas evidencia como mulheres são frequentemente julgadas mais por sua conduta pessoal do que por fatos concretos. “Anatomia de uma Queda” sugere, assim, que a verdadeira batalha travada por Sandra não se dá apenas no tribunal, mas contra uma sociedade que tende a condenar mulheres que desafiam estruturas de poder estabelecidas.

Na essência mais profunda da trama, o filme subverte a lógica tradicional das narrativas de tribunal ao recusar uma conclusão definitiva. As provas contraditórias, os especialistas divergentes e os testemunhos incompletos transformam o julgamento em uma metáfora para a própria existência, onde a busca pela certeza apenas amplifica a angústia e o mal-estar. As cenas no tribunal, extraordinárias tanto em densidade argumentativa quanto em intensidade emocional, não buscam oferecer respostas, mas evidenciar a falibilidade da crença de que a verdade pode ser plenamente capturada. Aqui, o filme se aproxima de uma perspectiva lacaniana: a verdade, no fundo, talvez não passe de uma construção narrativa que nos ajuda a sustentar a ilusão de ordem e coerência no caos da vida.

Ao rejeitar as convenções simplistas dos filmes de tribunal, “Anatomia de uma Queda” exige um engajamento ativo do espectador, convidando-o a lidar com o desconforto da incerteza. Não se trata de uma história interessada em fornecer soluções, mas sim de uma obra que nos força a confrontar as complexidades da experiência humana. Dessa maneira, Triet transforma uma premissa aparentemente simples — um julgamento por suspeita de homicídio — em uma profunda meditação sobre a natureza ambígua da verdade e o papel da ficção na construção da realidade.

Quando silencia as certezas e deixa apenas a dúvida pairando no ar, o filme atinge um patamar raro de sofisticação intelectual. “Anatomia de uma Queda” transcende qualquer categorização de gênero, rompendo expectativas ao se recusar a oferecer conforto ou redenção. No fim das contas, sua maior provocação talvez seja justamente essa: nos desafiar a aceitar que a verdade absoluta é inalcançável e que conviver com a incerteza pode ser o maior ato de coragem de todos.

Filme: Anatomia de uma Queda
Diretor: Justine Triet
Ano: 2024
Gênero: Drama/Suspense
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★