A era digital transformou a influência em uma moeda poderosa, mas raramente esse fenômeno foi exposto com tanta acidez quanto em “Vinagre de Maçã”, minissérie da Netflix que investiga a trajetória de Belle Gibson. A produção disseca a ascensão meteórica e a consequente derrocada da influenciadora, que construiu um império ao alegar ter superado um câncer terminal por meio de uma alimentação alternativa. O caso vai muito além da fraude para revelar a vulnerabilidade de um público que, sedento por soluções simplificadas, se deixa levar pelo brilho enganoso das redes sociais.
O enredo não está limitado à história de Gibson, mas estrutura sua narrativa de forma a explorar diferentes ângulos do fenômeno da desinformação. A decisão de intercalar sua trajetória com a de personagens fictícios confere densidade à trama, permitindo uma análise mais abrangente do impacto dessa farsa. Kaitlyn Dever entrega uma performance hipnotizante no papel da protagonista, capturando com precisão a dualidade de sua persona: ao mesmo tempo em que exala carisma e segurança, sua frieza calculada revela uma manipulação orquestrada com precisão. Alycia Debnam-Carey, como Milla Blake, encarna o arquétipo da seguidora influenciável, uma peça-chave no ecossistema da cultura digital que transforma desinformação em verdade.
O roteiro estrutura sua progressão de forma a construir um crescendo narrativo impactante. Alternando entre passado e presente, os episódios desenham a tessitura psicológica de Gibson, revelando como pequenas inverdades foram se acumulando até formarem uma rede de enganos incontrolável. A quebra da quarta parede nos primeiros capítulos é um recurso que amplifica o desconforto: ao olhar diretamente para o espectador, a protagonista não apenas narra sua versão dos fatos, mas desafia nossa própria percepção sobre o que é real e o que é fabricado.
No entanto, a série não se contenta em apenas retratar a ascensão e queda da influenciadora. Ela se aprofunda na análise da indústria do bem-estar, um terreno fértil para charlatanismo e pseudociência. A desconfiança em relação à medicina tradicional, combinada à necessidade humana por narrativas redentoras, criou um ambiente ideal para a proliferação de figuras como Gibson. A série expõe esse fenômeno sem recorrer ao didatismo, utilizando diálogos afiados e situações que refletem dilemas reais enfrentados por quem busca alternativas a tratamentos convencionais.
“Vinagre de Maçã” se conecta a outros casos emblemáticos de manipulação digital. O paralelo com Anna Delvey, protagonista de “Inventando Anna”, ou mesmo com Christopher Duntsch, de “Dr. Death”, reforça um padrão: o mundo digital não apenas abriga farsantes, mas os recompensa com visibilidade e credibilidade. A série enfatiza essa dinâmica ao mostrar como a própria audiência, movida por uma mistura de fascínio e desejo de acreditar, contribui para perpetuar esses mitos.
A produção acerta ao evitar a armadilha de vilanizar Gibson de maneira unidimensional. Em vez disso, levanta questionamentos sobre os fatores que possibilitaram sua fraude: até que ponto o público é cúmplice? Qual o papel da imprensa, das redes sociais e dos algoritmos nessa engrenagem? A jornada de Milla Blake e Lucy, esta última uma paciente fictícia em busca de uma cura milagrosa, reforça essa abordagem multifacetada, demonstrando que a disseminação de desinformação não ocorre no vácuo, mas em um cenário que favorece sua propagação.
A série adota uma estética sóbria e elegante, contrastando o brilho das telas e os ambientes artificiais das redes sociais com cenas mais cruas e desoladas que refletem as consequências da farsa. A trilha sonora sublinha a tensão crescente, tornando cada reviravolta ainda mais impactante. Apesar do ritmo por vezes contemplativo, a construção cuidadosa dos personagens mantém a atenção do espectador, transformando a experiência em algo que transcende o mero entretenimento.
“Vinagre de Maçã” não apenas reconstrói um caso escandaloso, mas se torna uma reflexão inquietante sobre o poder da narrativa na era digital. O maior trunfo da série é sua capacidade de fazer o público questionar não apenas os enganadores, mas também a necessidade quase irracional de acreditar em promessas impossíveis. Mais do que um retrato da queda de uma influenciadora, trata-se de um espelho incômodo da sociedade contemporânea, onde a verdade se torna apenas mais um elemento moldável dentro de um espetáculo cuidadosamente encenado.
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