O cinema é, entre outras coisas, um jogo de espelhos. Personagens refletem arquétipos, atores dialogam com suas personas públicas e histórias revisitadas ecoam clássicos que as antecederam. Em “Wolfs”, Jon Watts manipula esse reflexo com astúcia, reunindo George Clooney e Brad Pitt em um thriller que explora, com ironia e autoconsciência, o próprio status de seus protagonistas dentro da indústria. O filme não se contenta em ser apenas mais uma trama sobre criminosos profissionais obrigados a colaborar contra a própria vontade; ele é uma observação bem-humorada sobre o envelhecimento no cinema de ação, um comentário sobre a nostalgia cinematográfica e, acima de tudo, uma vitrine para a química inegável de dois dos últimos grandes astros de Hollywood.
A história se desenrola sem rodeios. Margaret (Amy Ryan), uma política de ambição calculada, vê-se diante de um dilema delicado: há um corpo em seu quarto de hotel e ele precisa desaparecer. Seu chamado por ajuda é atendido por Clooney, um especialista nesse tipo de serviço. No entanto, o hotel, por conta própria, chama Pitt para a mesma função. O resultado é um embate silencioso entre dois profissionais que se consideram insubstituíveis. Cada um acredita ter sido o único convocado e, mais do que limpar a cena do crime, ambos parecem determinados a provar qual dos dois é mais eficiente. Mas o que começa como um duelo de precisão e pragmatismo logo se transforma em caos, quando o suposto cadáver revela-se não tão morto assim.
Esse momento de ruptura na narrativa não é apenas uma reviravolta esperada em um thriller; é a fagulha que desvia o filme de uma fórmula tradicional e o transforma em uma corrida imprevisível. O “corpo” (Austin Abrams) não apenas sobrevive, mas se torna um elemento disruptivo que força Clooney e Pitt a improvisar em um jogo onde a ordem habitual das coisas já não se sustenta. Assim, o filme se torna uma grande perseguição por uma Nova York esvaziada e estilizada, um espaço que serve mais como um tabuleiro de xadrez cinematográfico do que como uma cidade real. Essa escolha visual, aliás, não é acidental: Watts e seu diretor de fotografia, Larkin Seiple, criam um ambiente onde a estilização é tão importante quanto a ação. O brilho frio das ruas, o contraste entre os figurinos e a paisagem urbana, e a forma como a cidade parece pertencer apenas a esses personagens reforçam a ideia de que “Wolfs” opera dentro de sua própria lógica, onde o realismo cede espaço para o jogo cênico.
Mas há mais em jogo do que apenas a missão fracassada de dois profissionais do crime. Watts constrói seus protagonistas como variações de um mesmo tema, quase como imagens sobrepostas. Eles se vestem da mesma forma, falam com o mesmo tom controlado e parecem compartilhar um código de conduta implícito. No entanto, essa simetria é exatamente o que os enfraquece. Se grandes duplas do cinema foram definidas por contrastes marcantes — a frieza de Newman contra o fervor de Redford, a impulsividade de Gibson contra a racionalidade de Glover —, aqui, a força do filme está na desconstrução desse paradigma. Clooney e Pitt não são complementares; são redundantes. E é justamente isso que torna o filme tão espirituoso: por trás da ação, há uma sátira embutida sobre a necessidade de renovação em um gênero muitas vezes aprisionado em seus próprios tropos.
A referência mais evidente nessa construção é Winston Wolfe, o lendário “resolvedor de problemas” de “Pulp Fiction”, interpretado por Harvey Keitel. Mas enquanto Tarantino usou esse personagem como um ponto de ruptura em sua narrativa, um profissional que exala experiência e confiança inabaláveis, “Wolfs” inverte a lógica. Se Clooney e Pitt são os herdeiros espirituais de Wolfe, então algo mudou no jogo do crime cinematográfico: os “consertadores” já não têm total controle sobre suas próprias histórias. O filme parece rir da ideia de que há uma fórmula infalível para esse tipo de narrativa — e cada cena de desordem é uma piada visual sobre essa falácia.
O humor, aliás, é um dos trunfos de Watts. Ele não recorre a piadas óbvias ou diálogos cômicos forçados, mas sim a um tipo de comédia que emerge do próprio desajuste entre os personagens e a situação. Um dos momentos mais sutis e eficazes nesse sentido envolve a incapacidade dos protagonistas de acompanhar o ritmo frenético dos acontecimentos, evidenciada por pequenos detalhes, como um frasco de analgésicos compartilhado ou a dificuldade de recuperar o fôlego durante uma perseguição. São nuances que reforçam a autoconsciência do filme: os personagens envelheceram, e o mundo do crime — ou, no subtexto, o próprio cinema de ação — talvez já não seja mais para eles.
“Wolfs” não se vende como uma obra grandiosa, e é justamente essa recusa à grandiloquência que lhe dá charme. Watts, que até então navegava pelas águas seguras do universo Marvel, encontra aqui um terreno onde a diversão surge sem a necessidade de explosões espetaculares ou efeitos visuais excessivos. O filme se sustenta naquilo que torna o cinema atemporal: um roteiro ágil, performances carismáticas e um olhar crítico disfarçado sob camadas de entretenimento. Como qualquer grande jogo de espelhos, ele não nos oferece apenas reflexos idênticos, mas sim distorções inteligentes que nos fazem olhar de novo, talvez com um sorriso irônico.
★★★★★★★★★★