Reinventar um ícone não é tarefa simples. Exige mais do que uma atualização estética ou um novo contexto narrativo: impõe a necessidade de justificar sua existência, ampliando camadas de significado e oferecendo uma leitura que vá além da mera nostalgia. “Cruella” vem dessa premissa como um espetáculo visual vibrante, embebido na estética do punk britânico dos anos 1970 e na grandiosidade dos dramas fashionistas. Entre reviravoltas, rivalidades ferozes e um desfile de figurinos exuberantes, o longa equilibra ambição e artifício, ainda que, por vezes, sacrifique nuances em nome do impacto.
A trajetória de Estella (Emma Stone), uma jovem dotada de talento nato para a moda, é marcada pelo desejo de ascensão em um meio dominado pelo rigor e pela manipulação. Trabalhando sob a tutela da implacável Baronesa von Hellman (Emma Thompson), ela aprende rapidamente que criatividade, sem astúcia, não basta. À medida que verdades sobre seu passado são reveladas, Estella se transforma na excêntrica e irreverente Cruella De Vil, assumindo uma postura de confronto contra sua mentora. Essa metamorfose, contudo, apresenta um dilema central: até que ponto o filme está disposto a abraçar a vilania de sua protagonista sem suavizá-la para torná-la palatável ao público?
O que sustenta “Cruella” não é apenas sua narrativa de vingança e emancipação, mas o magnetismo de suas atrizes principais. Emma Stone equilibra carisma e teatralidade, transitando entre a vulnerabilidade de Estella e a autoconfiança implacável de Cruella. Já Emma Thompson encarna a Baronesa com uma frieza cortante, evocando figuras de poder que não apenas ditam tendências, mas também esmagam aqueles que ousam desafiá-las. O embate entre as duas personagens confere dinamismo à trama e intensifica sua tensão dramática, ainda que o roteiro, por vezes, evite mergulhar em um antagonismo mais complexo.
Esteticamente, o longa se afirma como uma experiência arrebatadora. A direção de arte constrói uma Londres vibrante e caótica, onde a subversão estética do movimento punk se entrelaça à sofisticação do mundo da alta-costura. Os figurinos de Jenny Beavan não são apenas adornos, mas narrativas por si próprios: cada peça usada por Cruella reflete seu estado de espírito e sua escalada rumo ao domínio da cena fashion londrina. A trilha sonora, repleta de clássicos do rock, amplifica a energia do filme, ainda que, em certos momentos, sua onipresença sufoque a composição original de Nicholas Britell.
Entretanto, apesar de seu impacto estilístico, “Cruella” tropeça ao tentar conciliar sua protagonista entre os papéis de vítima e arquiteta de sua própria ascensão. O roteiro hesita em permitir que a personagem adote plenamente sua faceta mais cruel, distanciando-se da vilã que o público conhece de “101 Dálmatas”. Essa abordagem atenua o peso da transformação de Estella, tornando sua rebeldia mais uma performance estilizada do que um verdadeiro mergulho em uma psique perturbadora. Além disso, algumas soluções narrativas soam convenientes demais, minimizando os dilemas morais que poderiam elevar ainda mais a complexidade da história.
Ainda assim, dentro do universo de adaptações live-action da Disney, “Cruella” tem ousadia estética e talento de seu elenco. Não se trata de uma simples reciclagem de uma personagem clássica, mas de uma tentativa — ainda que parcialmente bem-sucedida — de reformular sua identidade sem alienar um público acostumado à clareza moral dos contos de fadas. O filme é um banquete visual, uma celebração do exagero e uma demonstração de que, às vezes, o estilo pode ser tão expressivo quanto a substância. Se não redefine sua protagonista de maneira definitiva, ao menos reafirma que Cruella De Vil, em qualquer versão, sempre encontrará um palco para brilhar.
★★★★★★★★★★