Clarice Lispector (1920-1977) foi uma tempestade contida no corpo de uma mulher que transitava pelas ruas do Rio de Janeiro como se desvendasse um território ao mesmo tempo íntimo e irreconhecível. Suas caminhadas pelo Leme, num Rio que já se dissipara antes mesmo de se tornar memória, pareciam catalisar os relâmpagos de sua escrita, uma força que aniquilava com precisão qualquer verniz de hipocrisia social.
A claridade que tanto amava era, paradoxalmente, o filtro de uma percepção que mergulhava no obscuro. “Perto do Coração Selvagem”, lançado em dezembro de 1943, flagra os primeiros confrontos de Joana com a descoberta de si mesma, costurando suas experiências afetivas e a insuspeita fragilidade que a transição para a maturidade escancara. O leitor acompanha essa jornada e, ao longo da trama, percebe que a lucidez da personagem se constrói sobre uma ignorância desfeita, desvelando sua ingenuidade inicial como um vestígio quase embaraçoso.
Esse primeiro romance de Clarice carrega ecos inesperados de “Cidade de Deus”, um relato brutamente poético de Paulo Lins, que, décadas depois, traduziu em literatura a brutalidade de um Brasil que não se esconde nos cartões-postais. A geografia emocional que Joana percorre em suas inquietações, ainda que distante, encontra ressonância no turbilhão de descobertas que formam a consciência de um outro protagonista: Zé Pequeno. Fernando Meirelles, ao adaptar Lins para o cinema, captou esse insólito parentesco e, por meio da reinvenção imagética, traduziu a violência latente em pura narrativa visual. No espelho distorcido entre Joana e Dadinho, que se converte no impiedoso Zé Pequeno, vislumbra-se a mesma lógica da sobrevivência a um meio que impõe sua fúria. O Brasil que une Clarice, Lins e Meirelles é o mesmo que encurrala sonhos, desloca corpos e os lança a realidades antagônicas, mas igualmente implacáveis.
O roteiro de Bráulio Mantovani estrutura-se em torno da oposição entre Zé Pequeno, Dadinho e Buscapé, um triângulo narrativo que imprime uma tensão raramente vista no cinema nacional. Para tornar esse embate ainda mais vívido, Meirelles recorre à sua longa experiência na publicidade e desenvolve estratégias visuais que imprimem dinamismo e crueza à história. O resultado é uma estética fragmentada e vibrante, que alcança seu ápice no embate entre os protagonistas. A cena do encontro entre Pequeno e Buscapé, com interpretações cruas de Leandro Firmino da Hora e Alexandre Rodrigues, sintetiza essa fusão de linguagem publicitária e visceralidade narrativa. A ironia trágica do cinema brasileiro, no entanto, reside no fato de que esses atores, depois de performances arrebatadoras, não tiveram oportunidades à altura do talento que demonstraram.
A icônica sequência da galinha em fuga, que poderia soar banal, revela-se uma introdução magistral ao universo do filme. A perseguição, que parece uma distração cômica, desagua na brutalidade do destino de Buscapé, transportado ao passado para testemunhar os primórdios da Cidade de Deus. Essa transição, marcada pelo giro de câmera que sintetiza anos de transformação urbana, é uma metáfora da violência que molda a geografia social do Rio. O bairro, construído para remover populações pobres do centro, já nascia como um exílio forçado, um desdobramento de décadas de despejos promovidos pelo Estado. A cinematografia de César Charlone, ao alternar tons sépia e luzes ofuscantes, sublinha essa memória de um tempo idealizado que logo se desfaz em cortes abruptos, à medida que a favela se torna um organismo em constante convulsão.
Na linha de frente dessa mutação está o trio Alicate, Cabeleira e Marreco, figuras que encarnam um otimismo breve, condenado desde a primeira nota da trilha que embala suas aspirações. A ironia de suas alcunhas remete a um grupo musical, mas a única sinfonia que conhecem é a cadência dos disparos que marcam sua rotina. É nesse cenário que Dadinho desponta como uma anomalia, uma força que recusa qualquer papel secundário. Sua transição para Zé Pequeno, selada em um terreiro de candomblé, simboliza uma travessia definitiva para a escuridão, um rito que não apenas troca um nome, mas consome o pouco de humanidade que ainda poderia restar.
Buscapé, por sua vez, parece ser o único capaz de escapar da lógica implacável da Cidade de Deus. Seu olhar, inicialmente ingênuo, transforma-se na lente que registra o horror sem se deixar absorver por ele. É o mocinho improvável de uma tragédia que não admite heróis. O espectador torce para que sua câmera se torne sua saída, mas também se inquieta com a dúvida: será que ele pode realmente permanecer imune? Ao longo do terceiro ato, sua trajetória se desenrola entre a ameaça e a resiliência, até se consolidar como um narrador que, de certa forma, também se torna cúmplice da história que registra. Assim como Zé Pequeno inscreve seu nome na memória da violência, Buscapé esculpe sua identidade em imagens, imortalizando uma realidade que o Brasil insiste em ignorar.
A permanência dessa narrativa como um retrato ainda atual de um país dividido revela uma engrenagem que não cessa de girar. O Brasil continua a produzir talentos do calibre de Clarice Lispector, Paulo Lins e Fernando Meirelles, mas persiste incapaz de transformar as histórias que esses criadores expõem. Diante de um poder público que só se faz presente nas favelas quando convém aos seus interesses, a vida segue como um roteiro que se repete. Não há final, apenas um looping de tragédias embaladas em discursos recicláveis. Como um espetáculo que jamais se encerra, como um Carnaval sem quarta-feira de cinzas.
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