A canção que dá nome ao curta, composta por Alfredo Rodrigo Duarte (1891-1982), conhecido como Marceneiro, e eternizada na voz de Amália Rodrigues (1920-1999) em 1962, não apenas abre “Estranha Forma de Vida” como estabelece sua atmosfera melancólica e densa. Pedro Almodóvar, ao assumir um gênero até então inexplorado em sua filmografia, o western, transforma-o em terreno para uma narrativa sobre ciclos inevitáveis e paixões mal resolvidas.
A história, sustentada pela sofisticação visual e pelo rigor narrativo habituais do diretor, desvela o reencontro de dois homens marcados por um passado que insiste em se impor ao presente, entre gestos de afeto e violência que alternam entre o arbitrário e o inexorável. Almodóvar condensa em meros 31 minutos uma trama carregada de desejo e ressentimento, empurrando seus personagens para confrontos que se desenrolam com a intensidade de uma tragédia anunciada.
A fértil identidade estética do cineasta resplandece a cada enquadramento, com a fotografia de José Luis Alcaine realçando cores e contrastes que acentuam a dissonância entre a rude paisagem do Velho Oeste e a sofisticação sensorial do cineasta. O curta prende o espectador sem concessões, evocando o que há de mais essencial na linguagem de Almodóvar: o melodrama visceral, a estilização cuidadosa e a narrativa que, mesmo ancorada no gênero, nunca se rende à previsibilidade. Embora haja ressonâncias evidentes com “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), Almodóvar não se limita a um espelho do clássico de Ang Lee. A relação entre seus protagonistas ganha um contorno próprio, debruçando-se menos sobre um amor impossibilitado e mais sobre uma paixão que se recusa a desaparecer.
O reencontro entre Silva, um ex-vaqueiro marcado pelo tempo, e Jake, o xerife que um dia foi seu amante, acontece em Bitter Creek, uma cidade perdida no meio de lugar algum. Diante de um passado que nunca se dissolveu completamente, eles se enfrentam como quem mede forças com fantasmas antigos. O verdadeiro propósito da visita de Silva não se revela de imediato, mas se insinua sob olhares tensos e silências carregadas. O subtexto homoerótico, presente desde o início, é acentuado por uma cena de intimidade em que corpos se encontram antes de se afastarem novamente, antecipando o embate definitivo. O roteiro dosa esse jogo de aproximação e distância com precisão cirúrgica, conduzindo a história por uma espiral de tensão crescente até que o duelo final se torne inevitável.
Pedro Pascal e Ethan Hawke personificam esses homens atravessados por sentimentos contraditórios, oscilando entre a nostalgia de um passado interrompido e a amargura de um presente irremediável. A dicotomia entre desejo e orgulho, amor e raiva, faz de cada interação um campo de batalha emocional. Um flashback ambientado em um armazém de vinho insinua o que poderia ter sido, mas que nunca chegou a ser, consolidando o tema central da narrativa: a impossibilidade de reescrever o tempo. Ao antecipar “O Quarto ao Lado” (2024), seu primeiro longa inteiramente falado em inglês, Almodóvar mostra que, independentemente da língua, certas emoções são universais e dispensam tradução. No duelo entre amor e destino, ele mais uma vez prova que o verdadeiro faroeste acontece dentro de nós.
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