O tempo das grandes sínteses passou. Vivemos a era das especializações fragmentadas, da leitura convertida em técnica, da literatura confinada aos claustros universitários. Os clássicos, que foram alimento e alento de leitores comuns, tornaram-se propriedade de exegetas herméticos, analisados por cortesãos da teoria com a frieza de um legista diante de um cadáver ilustre. Diante desse cenário, um experimento inusitado foi conduzido na Escola Paulista de Medicina da UNIFESP: um Laboratório de Humanidades, um enclave de resistência contra o esvaziamento da literatura, onde a palavra de Tolstói, Cervantes e Shakespeare ressoava não em tratados acadêmicos, mas na vida concreta dos leitores.
O propósito era simples, quase arcaico: devolver a literatura ao seu ofício primordial, o de provocar, iluminar, transformar. Inspirado na crítica de Tzvetan Todorov à reclusão dos clássicos nas torres de marfim da teoria, o Laboratório de Humanidades propunha uma reintegração radical entre a arte e a existência. Onde melhor testar essa hipótese do que na formação de profissionais da saúde, aqueles que lidam diariamente com a condição humana em sua nudez mais brutal? Ler Tolstói em um curso de medicina não era um luxo, mas um retorno ao essencial, pois quem trata corpos deve antes compreender almas, e não há espelho mais fiel da alma do que a literatura.

A leitura compartilhada tornou-se, nesse experimento, um ato de desvendamento. Um mesmo texto, ao ser debatido, expandia-se em múltiplas dimensões, ressoava de maneiras inesperadas, tornava-se vivo. Não se tratava de buscar significados definitivos, mas de reconhecer a obra literária como um campo de forças, uma entidade pulsante que, ao ser lida, também nos lê. O experimento demonstrava algo que a tradição já sabia, mas que o utilitarismo contemporâneo despreza: a literatura não é ornamento, mas necessidade. Ela amplia o olhar, refina a sensibilidade, ensina a escutar.
Uma das chaves desse processo foi o método da remissão colaborativa, um nome técnico para um gesto profundamente orgânico: permitir que a leitura de uma obra invoque outras, que a experiência estética se expanda para além de si mesma. Ler “Anna Kariênina” remetia a “O Banquete”, de Platão. As angústias de Anna evocavam as tragédias gregas. A trajetória de Liévin dialogava com as confissões de Agostinho. O texto de Tolstói não era um fim, mas um ponto de partida, um nó em uma rede infinita de significados.
Foi nesse contexto que se revelou o verdadeiro centro gravitacional da obra de Tolstói: o amor. Não um amor sentimental ou pueril, mas o amor como força constitutiva, como um fenômeno que nasce, cresce, adoece e morre — ou se transmuta. Entre as páginas do romance, entre os encontros e desencontros dos personagens, a literatura se tornava o que sempre fora: uma experiência viva, uma forma de conhecimento que não se esgota na abstração, mas se confirma na própria existência.
O sentido universal de Anna Kariênina
“Anna Kariênina” não é um romance sobre adultério, nem sobre castigo moral. O que se desvela no decorrer da narrativa é um tratado filosófico sobre a natureza do amor. Entre Anna e Vrónski, ele surge como uma febre, uma possessão que consome e destrói. Entre Liévin e Kitty, ele se ergue como construção paciente, como um aprendizado.
O que o Laboratório de Humanidades percebeu — e que se confirma em qualquer leitura atenta — é que Tolstói trata o amor como um “quinto elemento”, um princípio ativo que rege as vidas dos personagens. Ele não se submete à moral convencional ou à lógica da conveniência. Impõe-se como uma entidade autônoma, libertadora ou devastadora. Anna é tragada por essa força e, incapaz de administrá-la, sucumbe. Liévin, ao contrário, aprende a domá-la.
Essa dialética entre paixão e construção amorosa remete diretamente ao pensamento clássico. Platão, em “O Banquete”, descreve Eros como um ser híbrido, nascido da união entre a Penúria e o Recurso. O amor é sempre marcado pela incompletude, pela falta. Em “Anna Kariênina”, essa dualidade se materializa nos próprios pares amorosos: Vrónski e Anna encarnam o amor como desejo, voragem, excesso; Liévin e Kitty representam o amor como cultivo, como um ofício a ser exercido diariamente.
O romance é um espaço de experimentação, onde o leitor testemunha as metamorfoses do desejo, os perigos da idealização e as promessas — muitas vezes quebradas — da felicidade conjugal. “Anna Kariênina” confirma aquilo que a experiência literária já demonstrara no Laboratório de Humanidades: a literatura não é um comentário sobre a vida. Ela é a própria vida, disfarçada de ficção.
Se a obra segue fascinando leitores de diferentes épocas, é porque resiste a ser reduzida a uma única interpretação. “Anna Kariênina” não é uma mera crítica à hipocrisia social. Ele oscila entre ser uma tragédia moral, um ensaio filosófico e uma análise da sociedade russa do século 19.
Toda grande obra literária se ancora em um dilema essencial da condição humana. Em “Anna Kariênina”, esse dilema é o amor. Mas não um amor idealizado, pacificado ou redentor. Tolstói não trata o amor como um estado de graça, mas como uma força em perpétua combustão, uma entidade que se arrasta pelos meandros do desejo e da destruição. Amar, no universo do romance, é sempre um risco, um salto no escuro, um pacto com a incerteza.
A estrutura do romance nos apresenta dois modos distintos de amar. Anna e Vrónski: amor como tormenta, febre e vertigem. Liévin e Kitty: o amor como aprendizado, como um edifício que precisa ser construído pouco a pouco. A tragédia de Anna decorre justamente de sua incapacidade de aceitar essa lentidão. O que ela busca não é um amor ajustado à realidade, mas um absoluto. Seu erro não é amar, mas querer que o amor se mantenha sempre no mesmo estado febril em que começou.
Essa obsessão pelo amor como êxtase absoluto não pertence apenas ao século 19 russo. É um traço da modernidade. O desejo de uma experiência sentimental sem limites, de um afeto que transcenda as limitações do cotidiano, ressurge nos romances e nos filmes contemporâneos, nos discursos sobre liberdade emocional, nos imperativos de uma felicidade ininterrupta. Anna não é apenas uma personagem do passado. Ela é um arquétipo moderno. Sua ânsia de viver um amor que não se submeta a regras ou concessões ressoa nas angústias do presente.
A força de “Anna Kariênina” reside exatamente nisso: sua capacidade de continuar dizendo algo ao homem contemporâneo. Não há na trajetória de Anna apenas um drama conjugal, mas uma questão mais profunda, que ressoa nos debates sobre liberdade individual, feminismo e o papel das instituições. O dilema central do romance — seguir as normas ou desafiar o mundo? — atravessa discussões sobre relações afetivas, expectativas sociais e autonomia feminina. No século 19, Anna foi condenada por romper com o modelo da esposa submissa. Hoje, sua história ressoa de outra maneira: até que ponto somos, de fato, livres para amar? Quais são os limites dessa liberdade?
Se a obra segue fascinando leitores de diferentes épocas, é porque resiste a ser reduzida a uma única interpretação. Tolstói não nos entrega uma chave interpretativa única. Sua narrativa é feita de camadas, e cada leitura revela novas possibilidades. O romance não se esgota, pois não há nele uma única verdade. Há um campo de forças onde cada personagem representa uma possibilidade de existência, e cada possibilidade traz um risco.
A grande contradição da obra está na própria relação de Tolstói com sua protagonista. O autor concebeu “Anna Kariênina” como uma advertência contra a dissolução moral, um alerta sobre os perigos do desejo descontrolado. No entanto, em vez de criar um exemplo negativo, construiu uma personagem irresistível, uma mulher de carne e espírito, cuja força seduz o leitor. Tolstói queria condená-la, mas a imortalizou. Seu julgamento moral se desfaz diante da força vital de Anna, e o romance, que deveria ser uma história sobre punição, torna-se, paradoxalmente, um tributo à rebeldia.
Esse paradoxo está em toda a narrativa. Enquanto a sociedade do romance rejeita Anna, o texto de Tolstói a enaltece. Enquanto seu marido, Kariênin, representa a ordem e a estabilidade, o autor o retrata como um homem sem alma, um burocrata incapaz de entender o que significa amar. Vrónski, o amante, deveria ser o arquétipo da paixão romântica, mas aos poucos se revela pequeno diante da intensidade de Anna. A única personagem plenamente realizada, plenamente viva, é aquela que, ao fim, se destrói.
Essa ambiguidade moral reforça o caráter universal do romance. Anna não é apenas um nome entre os tantos que a literatura produziu. Ela é um símbolo, uma figura que ultrapassa seu contexto histórico para se tornar um enigma perene. Seu dilema não é apenas o de uma mulher do século 19, mas o de qualquer um que já se viu dividido entre o desejo e as regras, entre a liberdade e o pertencimento. Anna encarna, de maneira radical, a tensão entre tradição e individualidade, uma tensão que se tornaria central no século 20 e que ainda define a experiência contemporânea.
A modernidade está repleta de Annas: figuras que tentam romper com os códigos estabelecidos, desafiam as normas e pagam um preço por isso. Se no passado o romance era lido como uma crítica ao adultério, hoje ele se tornou um questionamento sobre os limites impostos à autonomia feminina. O que Anna queria não era apenas um novo amor. Ela queria uma nova vida, e foi essa pretensão que a sociedade considerou imperdoável.
Tolstói nos dá mais do que uma narrativa impecável. Ele nos oferece um espelho. Se “Anna Kariênina” continua a inquietar leitores, é porque sua protagonista ainda nos desafia. Sua história não pertence apenas ao século 19, assim como seu dilema não pertence apenas à ficção. No fundo, Anna continua entre nós e nos obriga a perguntar se somos livres para viver ou se, como ela, estamos presos a trilhos que não escolhemos.
Anna Kariênina, o romance
A grandeza de “Anna Kariênina” não reside apenas na força de sua protagonista, mas na complexidade de sua estrutura narrativa. Tolstói não constrói um romance linear, mas um duplo movimento, obra que se equilibra entre dois polos opostos. De um lado, a trajetória de Anna e Vrónski, marcada pelo desejo, transgressão e tragédia. Do outro, Liévin e Kitty, um casal cuja história não se desenrola em meio a escândalos ou rupturas, mas no esforço cotidiano de edificar um amor sólido. O romance não trata apenas da queda de uma mulher, mas do embate entre diferentes concepções de vida e de afeto.
Essa dicotomia se reflete também nos espaços do romance. Anna e Vrónski pertencem à cidade, ao mundo da corte, dos salões aristocráticos, das aparências que precisam ser constantemente sustentadas. Sua relação nasce no brilho de Moscou e se consolida no luxo de São Petersburgo, mas, ao mesmo tempo, está condenada à corrosão. Nesse universo, a imagem pesa mais do que a substância. Já Liévin e Kitty pertencem ao campo, à simplicidade do trabalho e da terra. A Rússia rural de Tolstói não é apenas um cenário, mas um ideal: um refúgio frente à artificialidade da aristocracia.
A progressão psicológica de Anna segue o arco clássico da tragédia: começa como mulher respeitada, segura de sua posição na sociedade, mas vai sendo consumida por sua paixão, pelas consequências das escolhas. No início, acredita poder conciliar desejo e dignidade, amor e independência. Mas as forças que regem seu mundo não lhe permitem isso. A sociedade que tolera adultérios discretos e pactos silenciosos rejeita Anna porque sua transgressão é pública, ela desafia a hipocrisia necessária à manutenção da ordem.
O amor entre Anna e Vrónski nasce da intensidade e do assombro. Diferente de Emma Bovary, que se entrega ao adultério para fugir do tédio, Anna se apaixona por Vrónski de forma involuntária, como sendo conduzida por algo maior. No início, sua paixão é exaltada, dotada de pureza. Mas essa pureza é ilusória. À medida que o romance avança, a relação entre os dois se deteriora. A euforia dá lugar à insegurança, a entrega se transforma em ciúme, o desejo em desconfiança. Anna, que antes desafiava o mundo com a certeza de seu amor, passa a se debater contra sua própria fragilidade. Vrónski não sabe como lidar com essa mutação: o que antes o fascinava, agora o oprime.
Em contraste, Liévin e Kitty representam o amor que se constrói, que não nasce de uma combustão súbita, mas de um processo paciente de amadurecimento. Liévin, que inicialmente idealiza Kitty, precisa aprender a amá-la não como projeção de um ideal, mas como pessoa real, com falhas e imperfeições. Kitty, por sua vez, precisa superar suas ilusões românticas e reconhecer o valor de um amor que não se impõe como raio, mas cresce como árvore. Liévin, ao se casar, entrega a Kitty seu diário, permitindo que ela conheça sua alma. Esse gesto simboliza um amor baseado na transparência, o oposto do que ocorre entre Anna e Vrónski, cuja relação se desgasta no não dito.
O contraste entre os dois casais é fundamental para a construção da tese de Tolstói. Não há, no romance, uma condenação ao amor, mas a uma forma de amor: a que se lança em um absoluto impossível. Anna e Vrónski não falham porque se amam, mas porque acreditam que o amor, por si só, basta. Tolstói, através de Liévin e Kitty, sugere que o verdadeiro amor não é o que resiste ao tempo, mas aquele que aprende a viver no tempo.
Se a trajetória de Anna é marcada pelo desejo de liberdade, seu fim é a constatação da impossibilidade dessa liberdade. Sua morte nos trilhos do trem não é um ato de desespero, é uma cena carregada de simbolismo. O trem, no século 19, era o ícone da modernidade, emblema do progresso material. O fato de Anna escolher os trilhos como palco de sua morte revela uma metáfora poderosa: seu suicídio é também um choque contra as forças de um mundo que não comporta sua existência. Anna, com seu desejo de viver sem concessões, é esmagada pela mesma modernidade que prometia libertá-la.
Essa simbologia torna sua morte mais significativa. No início do romance, um acidente ferroviário prenuncia o seu destino. No momento em que Anna e Vrónski se conhecem, um trabalhador é atropelado por um trem, um presságio que Tolstói insere de forma quase ritualística, marcando desde cedo o curso inexorável dos acontecimentos. O romance é impregnado do fatalismo das tragédias clássicas. Como Édipo, Anna não pode escapar de seu destino; como Medeia, é consumida pela paixão que a define.
O grande paradoxo de “Anna Kariênina” é que, embora seja um romance sobre o amor, ele desconstrói os mitos que sustentam a ideia do amor romântico. Tolstói nos mostra que o desejo pode ser avassalador, mas não é suficiente para garantir a felicidade. Que a liberdade é essencial, mas pode ser uma prisão quando não encontra um espaço para se concretizar, e a sociedade pode ser cruel, pois há regras que, mesmo injustas, são os pilares que sustentam a ordem da vida coletiva. Anna não está errada em querer viver intensamente, mas o mundo em que habita não lhe permite a intensidade sem um preço.
O que torna “Anna Kariênina” uma obra-prima não é apenas sua trama ou seus personagens, mas a profundidade com que Tolstói articula essas questões. Não há respostas prontas, só dilemas inescapáveis. Ao final, não sabemos se condenamos ou absolvemos Anna, se admiramos ou lamentamos sua coragem. O que sabemos é que ela permanece, sua presença assombra, provoca, obriga-nos a pensar sobre os limites e possibilidades do amor, da liberdade. Seu destino, marcado pelo ferro frio dos trilhos, não é só o fim de sua história, mas um questionamento que ecoa muito além de suas páginas.
A abertura de Anna Kariênina
“Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.” Com essa abertura, Tolstói inaugura um dos romances mais célebres da literatura. Afirmação categórica e enigma, proposição que condensa a complexidade do livro. Seu impacto se deve à sua construção formal e ao caráter universal da ideia.
A estrutura é equilibrada, com um paralelismo sintático que reforça a dicotomia entre felicidade e infelicidade. Em russo, a cadência é mais marcada, como se Tolstói estabelecesse uma lei da existência. O que se apresenta como enunciado objetivo carrega uma ironia. A uniformidade da felicidade familiar esconde a ideia de que a harmonia depende de um modelo, já a infelicidade surge das transgressões desse modelo.
A afirmação ecoa a tradição aristotélica do meio-termo. Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles argumenta que a virtude está no equilíbrio, evitando os extremos da carência e do excesso. Tolstói parece reforçar essa ideia ao sugerir que a felicidade é uma forma de estabilidade previsível, enquanto a infelicidade nasce do desequilíbrio. O que essa formulação ignora é o custo emocional dessa estabilidade. A felicidade, quando normatizada, pode se tornar um fardo, uma imposição disfarçada de serenidade.
No contexto do século 19, a frase carrega um peso adicional. O casamento aristocrático não era uma escolha, mas um contrato que assegurava a manutenção de uma ordem hierárquica. A felicidade conjugal não dependia de sentimentos individuais, mas da conformidade a um ato preestabelecido. As famílias felizes eram as que seguiam o roteiro previsto: a esposa como guardiã do lar, o marido como provedor, os filhos como herdeiros dessa estrutura. A infelicidade surgia quando alguém rompia esse equilíbrio.
Essa formulação permite uma leitura sociológica. Se a felicidade era ideal normativo, então a infelicidade era singular, resultava da quebra desse ideal. Cada crise matrimonial apresentava uma combinação única de fatores que desafiavam as convenções sociais. Anna Kariênina não é uma história de amor frustrado, mas a narrativa de uma mulher que se recusa a aceitar um modelo de felicidade imposto.
A frase inicial do romance pode ser lida, também, como uma teoria da alienação individual. Se a felicidade é um produto da conformidade, os indivíduos precisam se moldar para se encaixar. Quem se desvia experimenta uma solidão estrutural. O romance explora o dilema: Anna desafia expectativas, destrói sua reputação, mas se vê privada de um lugar no mundo. Sua infelicidade não é emocional, mas existencial.
Tolstói ilustra esse princípio na trajetória de seus personagens. Kariênin é um homem que obedece à norma e sua infelicidade é fria, mecânica, desprovida de grandeza. Vrónski, que representa o amor romântico, descobre tarde demais que o desejo não pode ser sustentado indefinidamente sem se transformar em um peso. Anna, ao tentar viver fora das regras, descobre que sua escolha não tem lugar na estrutura social. Nenhum encontra a felicidade plena: esta, no mundo de Tolstói, exige uma renúncia impossível.
Já os personagens que se submetem ao modelo social estabelecido encontram uma forma de equilíbrio. Kitty, depois de seu período de idealismo romântico, aceita seu papel dentro do casamento tradicional. Liévin, mesmo atormentado por dúvidas filosóficas, encontra sentido na vida rural e no matrimônio. Essa oposição reforça a tensão central do livro: é possível ser feliz sem abrir mão da liberdade individual?
Essa questão ressoa na contemporaneidade. No século 19 o casamento era pacto econômico e social, no século 21 ainda é espaço de câmbio entre desejo e estrutura. A felicidade conjugal, como Tolstói já sugeria, depende de concessões. A diferença é que, neste mundo que exalta a liberdade, as contradições do amor tornam-se mais evidentes.
A frase de abertura de “Anna Kariênina” estabelece o tom do romance, mas não é interpretação definitiva. Pode ser lida como constatação da ordem, crítica à normatização da felicidade, enigma filosófico sobre o sofrimento. A força da literatura reside na ambiguidade: cada leitor encontrará, nessa frase, um reflexo de sua própria experiência.
A frase gera um dilema interpretativo. Ela pode ser uma constatação objetiva: a felicidade obedece a um modelo, e a infelicidade se manifesta de formas singulares. Essa simplicidade esconde um paradoxo: se a felicidade é uniforme, isso não implica que seja também artificial, construída sobre convenções sociais rígidas? Se a infelicidade é única para cada indivíduo, não seria ela um reflexo de uma busca autêntica? O homem que vende felicidade e plenitude nas redes sociais seria, aos olhos de Tolstói, feliz ou caricato, artificial, personagem de si mesmo, em busca do aplauso nunca recebido?
O romance pode ser visto como prova da tese inicial: Anna se desvia do modelo tradicional e cai em desgraça, mas pode ser lido como uma denúncia da hipocrisia desse modelo. O que Tolstói parece nos dizer é que a felicidade, quando normatizada, é menos um estado emocional do que uma estrutura imposta. Já a infelicidade, precisamente por sua diversidade, é o resultado da tentativa de escapar desse determinismo.
O modo como Tolstói desenvolve essa ideia ao longo do romance reforça sua profundidade filosófica. Em “Guerra e Paz”, ele já havia explorado o tema do destino e da inevitabilidade dos eventos históricos. Em “Anna Kariênina”, essa investigação se desloca para o plano íntimo, psicológico. A felicidade familiar é uma forma de imobilidade, enquanto a infelicidade surge do movimento, da mudança. Anna, ao tentar modificar seu destino, ativa o mecanismo invisível que a levará à destruição.
A frase inicial também pode ser lida como uma estrutura que organiza o romance. Os personagens que seguem o padrão da felicidade — Liévin e Kitty — encontram alguma forma de realização. Já os que desafiam a estrutura — Anna e Vrónski — caminham para a ruína. Mas Tolstói não permite uma conclusão tão simples. Liévin, apesar da felicidade conjugal, permanece inquieto, em crises existenciais. A felicidade, no mundo tolstoiano, nunca é completa; ela sempre carrega sombras.
É nesse sentido que a abertura do romance se conecta a um tema mais amplo: a impossibilidade da felicidade plena. Nenhum dos personagens encontra um estado de satisfação absoluta. Todos os que buscam uma forma idealizada de amor acabam frustrados. Tolstói nos apresenta um mundo onde a felicidade é, no máximo, um equilíbrio precário, uma trégua entre desejos contraditórios. Esse é um dos pontos que fazem “Anna Kariênina” ressoar com tanta força na contemporaneidade.
O capítulo 21 da primeira parte
O capítulo 21 da primeira parte do romance é um microcosmo da narrativa inteira. O que parece ser uma cena doméstica comum — um chá noturno, conversas sobre trivialidades, a chegada inesperada de Vrónski — revela, nas entrelinhas, um complexo jogo de forças sociais e emocionais. Nesse capítulo Tolstói nos oferece os primeiros sinais da tragédia, os pequenos gestos e os silêncios dizem mais do que as palavras.
A cena de reconciliação entre Dolly e Stiepan Arcáditch é um exemplo da moralidade desigual do século 19. Stiepan, infiel contumaz, é aceito de volta sem maiores consequências. Sua traição não ameaça sua posição, nem a autoridade de marido. Para Dolly, resta a resignação: perdoá-lo não é escolha, mas uma necessidade. A posição da mulher dentro do casamento aristocrático russo não lhe oferece muitas alternativas.
Anna, ao observar a reconciliação, experimenta um misto de alívio e perplexidade. Ela deseja acreditar que a ordem foi restaurada, mas ao mesmo tempo percebe que essa restauração não se aplica a todos. A repetição da palavra “total” em seu pensamento (“Total, reconciliação total, total”) indica uma tentativa de convencimento. No fundo, ela já intui que, para uma mulher, nem todas as transgressões podem ser perdoadas.
O que torna esse capítulo poderoso é a sua forma: Tolstói insere a crítica sem recorrer a discursos explícitos. Apresenta-nos a concreta hipocrisia patriarcal: o adultério masculino pode ser esquecido, o feminino jamais. Anna não percebe essa lógica, mas os leitores começam a entender: sua trajetória será diferente da de Stiepan Arcáditch.
A grande ironia desse capítulo é que o casamento de Dolly e Stiepan Arcáditch permanecerá intacto, o de Anna será destruído. Não porque sua traição seja mais grave, mas porque ela recusará a hipocrisia. Esse é o ponto central do romance: a sociedade não pune o adultério, mas a recusa em mantê-lo nas normas estabelecidas. Essa é a razão pela qual Anna será condenada. Não porque amou, mas porque ousou amar publicamente.
O momento em que Anna se levanta para buscar o retrato de Serioja é um dos pontos mais reveladores do capítulo. Ela estava integrada à conversa, participando da rotina da casa dos Oblonski. Mas há um deslocamento repentino, um vazio que a atinge. Seu filho está longe, e essa ausência se impõe como uma ferida aberta. O retrato não é apenas uma lembrança, mas um substituto que tenta preencher a lacuna emocional.
Esse episódio antecipa um dos temas centrais do romance: a impossibilidade de conciliar amor e liberdade plena. O afastamento de Serioja é a primeira grande perda de Anna, um custo invisível que sua escolha lhe impõe. A felicidade não virá sem um preço. A distância entre mãe e filho simboliza a dissolução progressiva de sua vida anterior.
A cena também antecipa um drama da modernidade: a tentativa de compensar distâncias por meio de simulacros. Se Anna vivesse hoje, ela não buscaria o retrato físico de Serioja, mas seu perfil em redes sociais, suas mensagens, seus registros digitais. A tecnologia teria lhe dado a ilusão de proximidade, mas não a proximidade real. Tolstói antecipa a angústia contemporânea da hiperconectividade vazia.
A chegada de Vrónski à casa dos Oblonski é um evento de aparência banal, mas com implicações. Ele não entra, permanece à porta, hesita. Temos a essência da tragédia futura. O relacionamento entre Anna e Vrónski nasce do desencontro, do limiar. Ele está presente, mas não completamente. A hesitação prenuncia a natureza instável do amor.
A porta da casa funciona como uma fronteira simbólica. Vrónski não entra porque sabe, ainda que inconscientemente, que está ultrapassando um limite perigoso. Ele e Anna não pertencem ao mesmo espaço, e esse momento revela essa dissonância. Eles estão prestes a cruzar uma linha irreversível, mas ainda não têm plena consciência disso.
A escolha do espaço é significativa. A cena acontece na escada, um elemento que sugere passagem, transição. Anna, ao vê-lo, interrompe seu movimento de subida. Ela está entre dois mundos: o da estabilidade matrimonial e o da paixão proibida. Essa hesitação espacial reflete sua hesitação interna, o conflito entre desejo e conveniência.
Quando seus olhares se cruzam, Anna experimenta uma emoção mista: “Um estranho sentimento de prazer e, ao mesmo tempo, de medo agitou-se em seu coração.” Eis o verdadeiro início da tragédia. O desejo não pode ser negado, e vem acompanhado do pressentimento de destruição. Tolstói, em uma única frase, resume o paradoxo do amor em sua obra: a felicidade se confunde com a ameaça, o prazer traz consigo a ruína.
A expressão de Vrónski reforça essa sensação. Ele aparece “envergonhado” e “apreensivo”, demonstrando entender o que Anna não percebeu completamente: esse amor não terá fim pacífico. O desejo que une é o mesmo que os condenará. A cena inteira se constrói como um presságio silencioso, um aviso de que algo irreversível começou.
Quando Anna retorna com o álbum, Vrónski já se foi. Detalhe essencial: a ausência prenuncia futuras separações, amor marcado por presenças instáveis, encontros furtivos, partidas abruptas. O desencontro simboliza a fragilidade da relação que se inicia.
Tolstói encerra o capítulo com uma observação que sintetiza sua maestria no realismo psicológico: “Nada havia de excepcional ou de estranho no fato de um homem passar na casa de um amigo, às nove e meia, para saber detalhes de um jantar que se estava organizando, e não entrar, mas, a todos, isso pareceu estranho.” A banalidade do contrasta com o simbólico que carrega. Todos percebem que algo se alterou, mas ninguém consegue nomear essa perturbação. Esse é o verdadeiro início da tragédia de Anna.
O capítulo 21 ilustra uma das teses de Tolstói: não há felicidade absoluta. Dolly perdoa; não esquece. Stiepan Arcáditch mantém sua vida e perde o respeito da esposa. Anna sente a fissura na existência. Vrónski deseja Anna e hesita. A fragmentação das personagens reflete a constatação de Tolstói: a felicidade é incompleta e transitória.
O que torna esse capítulo magistral é que tudo nos é dado sem declarações grandiosas. Tolstói não afirma que a tragédia começou; mostra gestos, diálogos triviais, encontro casual. Literatura operada por camadas: cada gesto, hesitação, é peso invisível.
O jantar dos Oblonski deveria simbolizar a normalidade restaurada. No entanto, a chegada de Vrónski e o incômodo que isso gera quebram a ilusão de estabilidade. O que antes era apenas um casamento desgastado se torna pano de fundo para um drama maior: a ascensão de um desejo proibido e de uma inevitável desordem moral.
O silêncio e os olhares são elementos centrais. Anna e Vrónski não trocam palavras comprometedoras, mas se verem no momento errado, no lugar errado, sela o destino deles. Kitty observa e percebe a mudança. Seu rubor não é raiva, é compreensão instantânea. Ela entende, mesmo sem dizer: algo entre Anna e Vrónski foi decidido.
O trem que matará Anna existe simbolicamente aqui: um movimento irreversível, que começou sem ninguém perceber. Tolstói não escreve tragédias com explosões e revelações súbitas. Ele constrói ruínas silenciosas, processos que se desenrolam aos poucos, até que, quando finalmente percebemos, o desastre é inevitável. A maestria da cena está no controle narrativo: o mestre desacelera o tempo, prolonga a hesitação de Vrónski, enfatiza a naturalidade das interações e faz do trivial um presságio. Um jantar, um chá, um álbum de fotografias. Nada acontece, mas tudo já começou a acontecer.
A escada em que Anna e Vrónski se encontram é local de passagem e simboliza a transição entre dois estados, o limiar entre um mundo onde Anna ainda pode recuar e outro onde já não há volta. Ao interromper sua subida ao ver Vrónski, ela suspende o movimento de sua própria vida, como quem hesita à beira de um precipício.
O olhar de Vrónski, “envergonhado e apreensivo”, sugere que ele compreende o que Anna não admite. O desejo está, mas, com ele, há consciência do perigo. O início da tragédia, e não temos um beijo, não ouvimos a confissão de amor, só um olhar na escada.
Tolstói encerra a cena com um deslocamento da atenção para os outros personagens. O desconforto que Vrónski deixou paira no ar, mas ninguém o nomeia. Todos sentiram, algo mudou, mas não sabem o quê. Assim Tolstói constrói tragédias: uma sutil percepção de que, a partir de agora, nada será como antes.
A cena do capítulo 21 é uma aula de tensão sem recorrer a diálogos expositivos. O desconforto é etéreo, não é nomeado. Essa contenção narrativa é essencial para entender o romance: a tragédia não começa com grandes eventos, mas com pequenas desordens, com o deslocamento quase imperceptível de um olhar ou de um gesto. Anna sente “um estranho sentimento de prazer e, ao mesmo tempo, de medo”. Essa dualidade define a sua trajetória. Desejo e temor, o prazer acompanhado da consciência do risco. Anna, sem verbalizar a paixão, vê o corpo reagir, e o amor é uma inevitabilidade. Tolstói insiste na ambiguidade: é desejo, não um capricho; pulsão que escapa ao controle. Anna ainda é uma mulher respeitável, mas ao sentir essa primeira vertigem, não pertence completamente a esse mundo.
Essa é a genialidade de Tolstói: em vez de oferecer respostas, ele deposita no leitor a responsabilidade de interpretar os sinais. Nada acontece de forma explícita, mas a rede de gestos e silêncios determinou o curso dos eventos. Anna ainda pode se convencer de que não sente nada por Vrónski, mas o romance já sabe que ela sente.
O que se desenha nesse capítulo é a impossibilidade de um amor tranquilo. Anna e Vrónski experimentam a tensão entre atração e proibição. Essa dinâmica permanecerá até o fim. Mesmo nos momentos de maior entrega, haverá sempre uma sombra pairando sobre o casal: o medo de que esse amor não possa existir fora da transgressão.
O capítulo também sugere que a tragédia de Anna não é apenas individual, mas estrutural. Ela não cai sozinha. Sua ruína provoca ondas de desequilíbrio que atingem todos ao seu redor. Kitty, que até então via em Vrónski a promessa de uma felicidade romântica, tem suas ilusões destruídas antes mesmo de verbalizá-las.
A literatura de Tolstói não condena nem absolve Anna, apenas expõe, com honestidade brutal, os limites impostos à existência. O capítulo 21 é o primeiro sinal de que o amor de Anna e Vrónski não irá florescer no mundo real sem um custo devastador.
O legado de Tolstói
“Anna Kariênina” escapa ao seu criador. Tolstói, o moralista, tentou escrever um romance que alertasse contra os perigos do amor. Mas o artista venceu o moralista. O que deveria ser condenação se tornou um retrato humano inesquecível da literatura. Anna não é um exemplo a ser evitado, mas uma presença que desafia e fascina.
O que sustenta a imortalidade desse romance não é a lição que Tolstói queria ensinar, mas a ambiguidade que ele não conseguiu controlar. Se fosse apenas uma história sobre punição moral, teria se tornado obsoleta. Mas é a sua contradição interna — a luta entre o julgamento e a compaixão, entre a moralidade e a arte — que a mantém viva.
Essa tensão fica evidente quando observamos como a crítica acadêmica se dividiu ao longo dos anos. Para alguns, o romance reforça valores conservadores; para outros, denuncia as estruturas sociais que oprimem as mulheres. Aurora Fornoni Bernardini, brilhante e inesquecível professora de pós-graduação em Literatura Russa da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo “Considerações à margem de Anna Kariênina”, publicado na “Revista USP”, Edição 2008-2009, diz que Tolstói, apesar de sua intenção inicial, criou uma personagem que se impôs contra qualquer tentativa de redução moralista.
A leitura contemporânea do romance confirma essa hipótese. No estudo conduzido pelo humanista apaixonado, que transita os corredores da ciência, o Professor Dr. Dante Marcello Claramonte Gallian, estudo ao qual nos referimos no início deste ensaio, feito pelo Laboratório de Humanidades da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), publicado na Revista “Via Atlântica” de junho de 2016, “Anna Kariênina” se revelou um texto capaz de provocar reflexões sobre identidade, autonomia e desejo no século 21. A força da obra está na capacidade de interpelar leitores de qualquer época, trazendo perguntas novas a cada leitura.
Esse aspecto confirma a ideia de Tzvetan Todorov: os clássicos não são meros objetos de estudo acadêmico, mas instrumentos para compreender a condição humana. Ao relermos Tolstói, não estamos analisando o século 19, mas refletindo sobre os impasses e angústias da modernidade.
Talvez a maior ironia de “Anna Kariênina” seja que Tolstói tentou construir uma protagonista condenável, mas criou uma das personagens mais apaixonantes da literatura. Ele queria que o leitor julgasse Anna, mas nos fez amá-la. Ele queria mostrar as consequências da transgressão, mas nos fez questionar as regras que a condenaram. Esse dilema é o que distingue a grande literatura. Tolstói não escreveu um panfleto. Escreveu um romance que desafia interpretações definitivas. A cada leitura, encontramos um novo sentido, um novo ponto de tensão. A cada releitura, Anna nos parece diferente — às vezes heroica, às vezes trágica, mas sempre irredutível a um único significado.
A frase da abertura do romance é inesgotável, e seu final não encerra a história, a transfere para o leitor. Tolstói nos obriga a perguntar: quem estava certo? Anna, que seguiu seu desejo até a destruição, ou Kitty, que encontrou a paz dentro dos limites impostos? Nenhuma resposta é suficiente, e é por isso que seguimos lendo.
“Anna Kariênina” não é um livro que se fecha ao término da leitura. Ele permanece, inquieta, provoca. Ele nos obriga a encarar nossas próprias escolhas, a refletir sobre a tensão entre paixão e responsabilidade, entre liberdade e pertencimento, força-nos a formular as perguntas certas. O legado de Tolstói não é o de um autor que pregava verdades, mas o de um romancista que compreendeu a complexidade da vida. Ele tentou domesticar sua criação, mas falhou. Anna resistiu, atravessou os séculos, desafiou as interpretações. E é exatamente por isso que ela continua viva e, mais do que isso, vive e viverá para sempre em nós.