Hoje é a última chance de ver um dos melhores filmes da história da Netflix Divulgação / Netflix

Hoje é a última chance de ver um dos melhores filmes da história da Netflix

Entre a vastidão de filmes que exploram a ficção científica, poucos desafiam as convenções do gênero com a intensidade de “Aniquilação”, dirigido por Alex Garland. Enquanto muitas produções contemporâneas seguem trajetórias previsíveis, inspirando-se nas narrativas filosóficas e visuais de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, “Blade Runner” e “Matrix”, Garland adota uma abordagem distinta, evocando o lirismo perturbador de Tarkovsky em “Solaris” e “Stalker”. Sua obra constrói um universo de desorientação e angústia existencial, traduzindo em imagens um sentimento de inquietação profunda que ressoa além da tela.

A premissa pode parecer direta: um meteoro colide com um farol e dá origem a uma anomalia conhecida como “O Brilho”, onde as leis da natureza se dobram a lógicas enigmáticas. Contudo, o que começa como um mistério científico logo se revela um espelho distorcido da psique humana, abordando temas como a autodestruição, a fragilidade identitária e a inexorabilidade da mudança. A proposta ousada afastou os grandes estúdios, levando a Paramount a abrir mão da distribuição tradicional e transferir o longa para a Netflix, temendo que sua complexidade afastasse o público convencional, como ocorreu com “Mãe!”, de Darren Aronofsky.

A narrativa segue Lena (Natalie Portman), uma bióloga cuja vida desmorona quando seu marido, Kane (Oscar Isaac), ressurge de uma missão secreta dentro do Brilho. O retorno do soldado, marcado por um comportamento apático e sintomas alarmantes, conduz Lena a uma busca desesperada por respostas. Para isso, ela se une a uma expedição composta por mulheres de distintas especializações: a enigmática Dra. Ventress (Jennifer Jason Leigh), cuja rigidez revela uma inquietação filosófica subjacente; Anya (Gina Rodriguez), cuja impulsividade gera um constante clima de tensão; e Josie (Tessa Thompson), cuja introspecção sugere uma compreensão diferente da transformação que as aguarda. O Brilho, com suas mutações biológicas irreversíveis, é como um espaço de metamorfose incontrolável, funcionando como uma metáfora visceral para os impulsos de destruição e renovação que permeiam a existência.

Garland estrutura a narrativa com uma precisão calculada, alternando entre temporalidades e inserindo flashbacks que intensificam a carga emocional sem comprometer o mistério. Conforme a equipe avança pela paisagem alienígena, os fenômenos biológicos se tornam cada vez mais surreais: criaturas híbridas, deformações corporais e padrões genéticos reorganizados por uma força invisível. A fotografia de Rob Hardy captura essa mutação incessante, transformando a exuberância natural em algo ao mesmo tempo fascinante e aterrador. Cada detalhe visual colabora para a sensação de que a própria realidade está se desintegrando, alinhando-se ao horror biológico de “O Enigma de Outro Mundo” e à inquietação psicológica de “Sob a Pele”. A trilha sonora, marcada por dissonâncias e silêncios opressivos, amplifica essa atmosfera de estranhamento e inevitabilidade.

Ainda que a jornada seja hipnotizante, a culminação da expedição pode não atingir o impacto emocional esperado por todos, um desafio comum a histórias que giram em torno da exploração do desconhecido. No entanto, Garland evita respostas fáceis ou explicações didáticas, optando por deixar lacunas que ecoam na mente do espectador muito depois dos créditos finais. As entidades e fenômenos que surgem dentro do Brilho funcionam como manifestações tangíveis de medos ancestrais: a perda do eu, a mutação descontrolada, a dissolução da individualidade em algo irreconhecível. A alegoria central do filme se torna evidente ao longo da jornada: o Brilho opera como uma manifestação visual do câncer, uma força que reescreve o organismo de dentro para fora, desafiando a noção de identidade e continuidade.

O resultado transcende as expectativas usuais do gênero. Enquanto a maior parte das produções de ficção científica contemporânea se apoia no espetáculo visual e em roteiros confortáveis, “Aniquilação” exige do espectador um comprometimento diferente: a disposição para encarar o desconforto e a dúvida. Garland não cede à necessidade de explicações definitivas; ao invés disso, conduz a experiência de forma a provocar reflexão sobre as contradições da natureza humana, o impulso destrutivo que nos define e a constante ameaça da transformação incontrolável.

Mesmo com suas particularidades estruturais, o filme permanece uma experiência singular e perturbadora, que rejeita as fórmulas convencionais em favor de uma investigação existencial rara no cinema atual. Ao se afastar do entretenimento de fácil assimilação, “Aniquilação” se impõe como um desafio ao espectador, uma obra que não apenas se assiste, mas se absorve e se digere com o tempo. Entre o horror, a filosofia e a ficção científica, Garland oferece um trabalho que se recusa a ser esquecido, um convite à contemplação sobre a fragilidade daquilo que chamamos de identidade.

Filme: Aniquilação
Diretor: Alex Garland
Ano: 2018
Gênero: Aventura/Drama/Ficção Científica/Mistério
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★