O zunido das moscas negras demora a se manifestar em “Cidade de Asfalto”, mas quando finalmente se impõe, torna-se inseparável da trajetória tortuosa de Ollie Cross. O jovem socorrista do Colorado encontra em Nova York um cenário mais próximo do purgatório do que da cidade de promessas que imaginara, suportando cada plantão como um rito de iniciação ao caos. Enquanto aguarda uma nova tentativa de ingresso na faculdade de medicina, vê-se lançado ao epicentro da degradação humana, entre os chamados de emergência que oscilam entre o absurdo e o insuportável.
Adaptado do conto “Black Flies” (2008), de Shannon Burke, o filme dirigido por Jean-Stéphane Sauvaire não apenas documenta essa jornada com crueza, mas a torna visceral, evocando no espectador um desconforto que ultrapassa a tela. Sauvaire, hábil em explorar os limites do realismo sem resvalar no mero choque, transforma o grotesco em um imperativo narrativo, justificando cada instante de brutalidade como parte de um processo irreversível de transformação.
A estrutura fragmentada do roteiro de Ben Mac Brown e Ryan King reforça a sensação de vertigem que se apodera do protagonista. Sauvaire costura o filme em uma linha do tempo sinuosa, marcada pela alternância entre momentos de fraqueza e resiliência, que convertem Ollie em um anti-herói oscilante entre a compaixão e o embrutecimento. O deslocamento incessante da ambulância, rasgando o Brooklyn em meio à balbúrdia da cidade, reflete essa tensão interna.
Em sua primeira chamada, ao lado do parceiro veterano Gene Rutkovsky, depara-se com um jovem negro baleado em um beco, experiência que não se encerra com a entrega do paciente no hospital, mas se estende ao enfrentamento de burocracias desumanas e à hostilidade dos familiares. A jornada de Ollie não termina com o apagar das luzes do turno: sua república decadente em Chinatown se converte em um segundo campo de batalha, onde ele luta contra a exaustão, a desilusão e a gradual perda de sua própria identidade.
A relação entre Ollie e Rut desvia-se de qualquer arquétipo previsível de mestre e discípulo. Sauvaire não se contenta com estereótipos: ele insinua a fusão de ambos em uma mesma angústia, forjando um vínculo que transcende o pragmatismo do cotidiano. O novato luta contra a percepção de que seu trabalho é mais do que um expediente temporário, enquanto Rut, há anos imerso nessa rotina brutal, encontra na ambulância sua única razão de existência. O veterano tolera injúrias, enfiando as mãos em entranhas abertas e testemunhando batalhas urbanas sem jamais recuar.
Ollie, por sua vez, ainda tateia um sentido, em meio a pequenas tentativas de normalidade, como o breve relacionamento com a personagem de Raquel Nave, mãe solo que abandona após um deslize impensado. Rut, por outro lado, visita a filha Sylvie e a ex-mulher, papel de Katherine Waterston, antes que a trama os empurre para um dilema maior, envolvendo a boxeadora Kali Reis no papel de Nia, uma ex-viciada em heroína HIV positiva que dá à luz um bebê que parece não ter futuro.
É nesse ponto que Sauvaire arma o golpe definitivo. O nascimento dessa criança escancara fissuras na psique de Rut, obrigando Ollie a confrontá-lo como nunca antes. É também a cena em que Sean Penn e Tye Sheridan reafirmam a escolha de seus papéis, sustentando um embate carregado de tensão. Entre coadjuvantes marcantes, surge ainda Mike Tyson (!) em uma das presenças inesperadas do longa. No entanto, é Kali Reis quem impõe sua força, retornando ao parto com uma atuação de impacto. Michael Pitt, na pele do enigmático Lafontaine, vocaliza a verdade última do filme ao proferir, após um evento grotesco envolvendo um pit bull, que talvez o paraíso não exista, mas os portões do inferno se abrem diariamente, sem falha. Ollie nunca duvidou disso. Ele apenas demorou a perceber que já estava do outro lado.
★★★★★★★★★★