Notas sobre Pedro Páramo, de Juan Rulfo

Notas sobre Pedro Páramo, de Juan Rulfo

Muita gente considera o romance “Pedro Páramo” (1955), de Juan Rulfo, um clássico da literatura mundial e de todos os tempos. Mas se trata de um livro bem diferente de outras obras consideradas sagradas. Mereceria até outro tratamento. Uma provocação a ser feita: dessacralizar a narrativa do autor mexicano e fazer uma leitura profanadora. Também deve-se retirar o rótulo de obra universal, além de eliminar obviamente a ideia de ser um clássico que uma pessoa deve conhecer de qualquer jeito.

“Pedro Páramo” está fincado no seu tempo e espaço, assim como o romance “Cem Anos de Solidão” (1967), de Gabriel García Márquez. Uma solicitação: dispensar as duas obras da marca do “realismo mágico”. É muito peso a ser carregado por uma vida inteira, sobretudo depois da morte. Bem fazem os leitores e as leitoras que livram os dois escritores dessa carga e abrem outros caminhos. Há dimensões a mais para se buscar nesses livros que viraram filme e série da Netflix. Como contribuição para a leitura, escrevi notas provisórias sobre “Pedro Páramo”: 

Pedro Páramo
Pedro Páramo, de Juan Rulfo (José Olympio, 176 páginas, tradução de Eric Nepomuceno)

1 — As vozes dos personagens não seguem uma conversa comum. Aparecem lembranças, sussurros e ecos, sem uma ordem clara. Segundo leitores bons e mais atualizados, a oralidade peculiar criada por Rulfo não é simplesmente uma reprodução de como falavam os mexicanos do campo. Trata-se de “ficcionalização” da voz que explora a negatividade. Os personagens não falam para serem ouvidos, uma vez que eles revelam os resquícios de existências interrompidas. Suas vozes não comunicam fatos. Trazem isso sim lacunas, repetições e apagamentos da memória.

A escrita de Rulfo transforma a oralidade num mecanismo negativo. Os murmúrios e os silêncios não reafirmam a tradição popular de maneira positiva, mas evidenciam a dissolução da história e da identidade dos personagens que tem a ver com a frustração da Revolução Mexicana (1910-1920). Na verdade, é uma narrativa dos horrores provocados pelos europeus no Novo Mundo. Os mortos em Comala não contam suas vidas. Apenas repetem fragmentos inconclusos de suas existências, tornando suas falas um campo de incerteza e muito assombro.

2 — A narrativa feita por vozes é sempre um desafio e um estímulo para quem pretende filmar “Pedro Páramo”. Em 1967, o diretor Carlos Velo tentou mostrar essa história de vozes com imagens escuras, sombras e paisagens vazias. A ideia era passar a sensação de mistério e silêncio do livro. Uma cópia pode ser vista no YouTube. Já a nova versão lançada pela Netflix em 2024 escolheu um caminho diferente. Ao invés da escuridão em preto e branco, Rodrigo Prieto encheu a cidade de Comala de cores vivas e detalhou os cenários. Dessa forma, o filme deu mais forma ao que no livro aparece mais como indefinido e misterioso. Temos assim duas formas diferentes de ver Comala.

3 — Um dos fantasmas maiores é a Revolução Mexicana e sua história que nunca termina. Ela foi um momento importante da história do país e mobilizou gente do mundo inteiro. No começo do século 20, muitos acreditaram que a revolução traria mudanças e um futuro melhor. Mas, no tempo em que Juan Rulfo escreveu seu livro, essa ideia deixara de ser tão forte. Em “Pedro Páramo”, vemos que a revolução não resolveu os problemas do povo. Pelo contrário, a cidade de Comala está cheia de mortos que não encontram paz, como se o passado nunca fosse esquecido.

Pedro Páramo, o personagem que governou Comala, representa a ideia de um passado que se recusa a desaparecer. Ele simboliza a permanência do poder antigo, mesmo depois da revolução, e é um fantasma que assombra as gerações seguintes. O livro mostra um México preso no tempo, sem conseguir seguir em frente, girando em falso. É uma visão muito próximo da ficção de hoje. No entanto, o espectro do revolucionário é uma figura recorrente na cultura mexicana, haja vista o surgimento 30 anos atrás do subcomandante Marcos e seu Exército Zapatista, carregando panfletos contra a globalização. 

4 — Com tanto fantasma, o livro de Rulfo virou um dos representantes do “realismo mágico”. Só se fala nisso quando os leitores e as leitoras se encontram. Hoje, entretanto, seria mais interessante ler “Pedro Páramo” pela lente do conceito de “irrealismo crítico”, desenvolvido pelo pensador brasileiro Michael Löwy e aprofundado pelos ingleses do Coletivo Warwick (WReC). O “irrealismo” não é a mesma coisa que “realismo mágico”, pois não busca tão somente inserir elementos sobrenaturais na narrativa.

Os tapetes voadores de “Cem Anos de Solidão” são puro ilusionismo — o conceito de “gimmick” (truque, artificio) pensado por Sianne Ngai nas artes. O movimento do irrealismo está na construção de um registro formal de transição histórica, especialmente para os tempos de crise e mudança social.

Sob esse prisma, Thomas Waller analisa a ficção africana contemporânea. Segundo ele, o “irrealismo crítico” combina detalhes realistas com elementos que distorcem a realidade, criando um espaço literário para contradições do mundo moderno que não são reveladas por outros formas artísticas. Ao contrário da versão banal do “realismo mágico”, que muitas vezes reforça a visão encantada da realidade, o “irrealismo” serve como crítica social, a fim de mostrar o estranhamento que as mudanças históricas provocam na percepção do tempo e da identidade.

No caso de “Pedro Páramo”, a cidade de Comala é um espaço irrealista. Lugar onde os mortos falam e o tempo não avança. A estética irrealista expõe, da melhor forma, a condição histórica do México pós-revolução, um país que deveria ter avançado e continua preso aos fantasmas. A História que não ensina nada e da qual não aprendemos coisa alguma. De novo: “Pedro Páramo” não é um romance sobre fantasmas e situações sobrenaturais. É um testemunho formal das transformações e das rupturas sociais do século 20, ou seja, é o “mundo fora dos eixos” na leitura que Jacques Derrida faz de Hamlet em “Espectros de Marx”.

5 — Os reflexos de “Pedro Páramo” no Brasil podem ser vistos no livro “Harmada” (1993), de João Gilberto Noll. O protagonista também vaga por um mundo sem uma ordem clara, onde tempo e espaço não fazem muito sentido. Tanto “Pedro Páramo” quanto “Harmada” mostram figuras que buscam algo que talvez nunca encontrem. Os dois livros têm em comum a estrutura hiper-fragmentada e a presença de um personagem errante, que não possui um lugar fixo de pertencimento.

Flora Sussekind percebeu a ligação entre os dois livros. Em “Pedro Páramo”, Juan Preciado busca seu pai em Comala e encontra apenas vozes dos mortos. Em “Harmada”, o narrador também se perde em cenários instáveis. Não há certeza sobre o que é ou não real. Os personagens têm nomes parecidos: Pedro Páramo e Pedro Harmada. No final, o protagonista dá de cara com Pedro Harmada. Esse encontro sugere um ciclo sem fim, assim como a trajetória de Preciado. Porém, o objetivo não é chegar a um destino. O que importa são a jornada em si e as descobertas ao longo do caminho.

No livro “A Cabeça de Santo” (2017), de Socorro Acioli, também há uma relação entre o mundo dos vivos e aquilo que não pode ser visto. A epígrafe é uma citação de Juan Rulfo. O protagonista Samuel, assim como Juan Preciado, recebe a missão de sua mãe (prestes a morrer) de procurar o pai que não conheceu. Trata-se de uma jornada pelo sertão brasileiro, pela cultura popular e pelas crenças religiosas. Uma busca construtiva e até positiva no momento em que o Brasil virou uma ruína na segunda década do século 21.