O faroeste expandiu-se ao ponto de transbordar os limites que lhe foram originalmente atribuídos, tornando-se um território fértil para discussões que vão muito além dos duelos ao pôr do sol e das disputas entre justiceiros e foras da lei. Há tempos, a paisagem árida do gênero abriga tramas que desconstroem arquétipos, desviando-se das figuras convencionais dos caubóis imbatíveis e dos sacerdotes dissolutos para explorar outras vertentes do humano.
A brutalidade e a resistência, antes símbolos inequívocos de heroísmo, agora também abrem espaço para dilemas íntimos, paixões tortuosas e contradições morais, tornando o faroeste um palco para reflexões que desafiam sua própria essência. Assim, histórias ambientadas no Velho Oeste passaram a ser menos sobre a destreza com armas e mais sobre a fragilidade das convicções, os impulsos inconfessáveis e os códigos éticos improváveis que emergem onde a civilização se dissolve na poeira.
“Amaldiçoada” se insere nesse campo ampliado do faroeste contemporâneo, não apenas pelo que narra, mas pela forma como o faz. Sob a direção do holandês Martin Koolhoven, a narrativa assume um tom que remete a um julgamento de valores, evocando um passado onde as leis divinas e as terrenas se misturavam em uma lógica brutal e inexorável. A trama é conduzida em quatro capítulos que aludem à Bíblia, não como um artifício meramente estético, mas como um reflexo da teia moral que rege a vida de sua protagonista.
A estrutura da história confere ao filme um caráter quase mítico, reforçando a ideia de que o destino de uma mulher pode ser determinado não por suas ações, mas pelo olhar daqueles que a cercam. A obra trafega entre a opressão religiosa e os impulsos mais primitivos da vingança, revelando-se tanto um faroeste quanto uma meditação sobre o peso do passado e a impossibilidade de escapar de seus desígnios.
No centro dessa fábula cruel está Elizabeth Brundy, cuja existência é moldada pelo medo e pela necessidade de se esconder. Sua percepção do mundo tornou-se enevoada desde a chegada de um novo reverendo à cidade, presença que desperta nela uma inquietação latente, um pavor que se traduz em gestos calculados e olhares furtivos. Se no primeiro ato a natureza dessa ameaça se mantém apenas como uma sombra, no segundo ela se confirma de maneira avassaladora. Enquanto tenta levar uma vida pacata como parteira, ao lado do marido e dos filhos, Liz sabe que sua tranquilidade está por um fio. Koolhoven, ciente da força dessa tensão, prolonga ao máximo o embate entre ela e o pregador, retardando revelações que, quando enfim emergem, reconfiguram completamente a percepção do espectador. Dakota Fanning e Guy Pearce protagonizam esse duelo com uma intensidade crescente, traduzindo com precisão os tormentos de seus personagens.
A ambição de Koolhoven em construir um épico moral é evidente, e por boa parte da narrativa sua abordagem rigorosa funciona de maneira impecável. No entanto, ao se aproximar do desfecho, sua ânsia de amplificar a grandiosidade do filme pode se tornar um peso para a fluidez da trama. Entre simbolismos densos e uma progressão dramática que se alonga além do necessário, o longa corre o risco de perder parte de seu impacto. Ainda assim, sua força reside na coragem de conduzir o faroeste a um território menos maniqueísta e mais visceral, onde as noções de justiça e redenção se confundem em um jogo cruel de poder e sobrevivência.
★★★★★★★★★★