O filme mais estranho e genial que você vai assistir na sua vida,  na Netflix Divulgação / Protagonist Pictures

O filme mais estranho e genial que você vai assistir na sua vida, na Netflix

Em um universo que opera sob uma lógica impiedosa, “O Lagosta” constrói uma fábula distorcida sobre a obsessão humana por enquadrar a vida amorosa em moldes preestabelecidos. Sob a direção meticulosa de Yorgos Lanthimos, o filme apresenta um mundo onde a solidão não é uma escolha, mas um desvio a ser corrigido de forma extrema. Nesse cenário, solteiros são enviados a um hotel e submetidos a um prazo rígido para encontrar um parceiro. O fracasso os condena a uma transformação zoológica irreversível, reduzindo-os a criaturas descartadas na natureza. Com essa premissa, Lanthimos não apenas questiona os mecanismos sociais que regulam os relacionamentos, mas desvela a violência simbólica contida nas normas que definem o que significa pertencer.

O protagonista, David (Colin Farrell), adentra esse sistema bizarro como um recém-divorciado desprovido de perspectivas. Sua jornada se desenvolve num ambiente onde os sentimentos são forjados e a individualidade é submetida a critérios arbitrários. O hotel impõe regras absurdas com a frieza de uma burocracia estatal: as afinidades precisam ser demonstradas por traços físicos ou comportamentais evidentes, o sexo é monitorado e sancionado, e os fracassos são punidos sem piedade. Os diálogos minimalistas e a atuação contida do elenco — que inclui Olivia Colman, John C. Reilly e Rachel Weisz —.  acentuam a atmosfera de estranheza, transformando a apatia dos personagens em um comentário mordaz sobre a artificialidade das interações humanas sob pressão social.

Lanthimos orquestra sua sátira com precisão cirúrgica, fazendo do humor negro um instrumento de desconforto. O riso, quando surge, é amargo e desconcertante. A mecânica do hotel  — desde os exercícios pedagógicos que ensinam os hóspedes a evitar a solidão até a absurda caça aos solitários, na qual capturar um fugitivo garante mais tempo no programa — ridiculariza o culto à vida a dois. No entanto, essa crítica não se limita à imposição do casal como estrutura normativa: à medida que a história se desdobra, o filme revela que a negação radical desse sistema não conduz à liberdade, mas a outra forma de aprisionamento.

A segunda metade da trama desloca o foco para a comunidade dos solitários, habitantes da floresta que rejeitam a ditadura do amor romântico. O que poderia ser uma fuga para a autenticidade, no entanto, se revela uma nova tirania. No grupo, o afeto é proibido com igual rigor, e qualquer vínculo emocional é castigado com violência. Lanthimos expõe, assim, um ciclo de opressão no qual a negação absoluta de um modelo apenas gera seu oposto extremo. O que parecia uma parábola sobre a imposição do casal se amplia para um exame das estruturas de poder que regem qualquer tipo de coletividade. A liberdade, sugere o filme, pode ser apenas uma ilusão intermediada por regras invisíveis.

“O Lagosta” potencializa sua proposta com uma direção de arte que enfatiza a frieza do mundo retratado. A fotografia despojada, com paleta de cores austeras e composições simétricas, reforça a rigidez desse universo. Cada cena é construída com um rigor que amplifica o desconforto, desde os enquadramentos meticulosamente calculados até a trilha sonora, que alterna entre o silêncio opressor e a dramaticidade dissonante. O ritmo pausado e os diálogos artificiais não são escolhas arbitrárias, mas sim ferramentas que reforçam a atmosfera de absurdo e desumanização.

O desfecho encerra a narrativa com um dilema que obriga o espectador a participar do jogo de Lanthimos. David, agora apaixonado, se vê diante de um sacrifício extremo para se adequar ao padrão imposto. O filme corta para o preto antes que possamos testemunhar sua decisão, deixando no ar a questão essencial: o amor, em qualquer configuração, é algo que se pode moldar para se encaixar em um sistema ou ele escapa a qualquer tentativa de controle? “O Lagosta” não se contenta em ser uma crítica a convenções amorosas; sua força reside na desconstrução de qualquer ideologia que transforme o humano em algo que precisa ser corrigido.

Estranho, desconcertante e intelectualmente provocador, “O Lagosta” é um espelho distorcido de nossa obsessão por encaixar a vida em moldes pré-fabricados — e, como todo grande espelho, sua imagem inquieta porque reflete algo que preferimos não encarar.

Filme: O Lagosta
Diretor: Yorgos Lanthimos
Ano: 2015
Gênero: Comédia/Drama/Ficção Científica/Musical/Romance
Avaliação: 9/10 1 1
★★★★★★★★★