Jep Gambardella, escritor de um livro só e já raspando na velhice, passa por uma crise existencial que o impele a refletir sobre como fora sua vida até aquele momento. A mediocridade que jamais o incomodara passa a ser um pesadelo constante para Gambardella, ainda que ele não saiba muito bem o que fazer com isso. Esse é o mote de “A Grande Beleza”, uma história não exatamente original, mas que fomenta discussões perturbadoras. Gambardella, mesmo incomodado, segue com a rotina de sempre: quando não está envolvido em debates sobre os mais variados temas com amigos por conveniência enquanto desfruta da boa comida de um dos restaurantes de luxo que tem por hábito frequentar, esse dândi inveterado organiza festas não menos ostensórias, no intuito de assim encontrar algum sentido para a sua vida.
É justamente na comemoração de seu aniversário de 65 anos que alguma coisa se quebra e a luz faz-se no interior dessa alma em frangalhos, para onde Paolo Sorrentino despacha-nos sem escalas. Um dos grandes nomes da pródiga indústria cinematográfica italiana, Sorrentino tem o que um cineasta pode ter de mais valioso: a capacidade de levar a audiência a encantar-se com um personagem cínico, mórbido, dialético, saborosamente caótico por meio de imagens de um onirismo lúgubre e feérico, o que remete-nos a Federico Fellini (1920-1993). Mas o mestre não empana a genialidade de seu epígono.
O aniversário de Gambardella reúne todo tipo de gente, de modelos milionárias e esqueléticas a magnatas da imprensa, passando por Dadina, sua ex-editora-chefe dos tempos em que colaborava com uma revista de jornalismo literário, que chama atenção não por sua inteligência e bagagem cultural, mas por ser anã. De propósito, Sorrentino dispõe de Giovanna Vignola em várias cenas nesse dédalo de ilusões e falsos profetas, ainda que a melhor atuação da atriz seja mesmo ao lado do protagonista, depois da volta de Gambardella ao ramerrão do dia a dia, gasto em jantares enfadonhos com gente pernóstica, que afeta conhecer Proust e ter rodado o mundo.
Ele acha que está entediado porque agora enxerga como Roma é fútil, mas o problema está nele. Ele passa a detestar Roma não por causa da mediocridade das pessoas, mas por ser ele mesmo um provinciano. Toni Servillo preenche o arco de seu anti-herói com a mordacidade de Gambardella, mas deixa espaço o bastante para escancarar sua covardia e seu vitimismo. Os figurinos de Daniela Ciancio aproximam-no de personalidades enérgicas como Tom Wolfe (1930-2018) e Gay Talese, cavando um imenso abismo entre o que Gambardella deseja ser e o que de fato é. Sorrentino é um exímio criador de tipos débeis, de uma masculinidade fragílissima, para lançar mão de uma expressão da moda. E Gambardella está para Sorrentino como Davi para Michelangelo.
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2014, “A Grande Beleza” junta-se a um vasto rol de ótimos trabalhos do diretor, a exemplo de “As Consequências do Amor” (2004) e “Aqui é o Meu Lugar” (2011), nos quais aborda em diferentes gradações o desajuste e a mágoa. Sorrentino envereda com gosto por essa estrada torta, de acordo com o que também se assiste no arrebatador “A Mão de Deus” (2021), mas aqui, como o título sugere, ele e o corroteirista Umberto Contarello fixam-se nas ideias genuínas e picaretas do belo, e o esmerado texto dos dois até parece um dos luminosos ensaios do saudoso Roger Scruton (1944-2020), ferrenho defensor da estética como instrumento por meio do qual o homem teria alguma chance de fugir da tentação totalitária que a natureza da política esconde.
“A Grande Beleza” é um minucioso estudo de personagem que abriga universos opostos e complementares, sem a profundidade de intelectuais como Scruton, porque não se presta a tal, e assim mesmo transformador, quiçá revolucionário. Sorrentino borra e realça aqueles tópicos que considera importantes regalando o público com a fotografia sem defeitos de Luca Bigazzi, um espetáculo carnavalesco de cores e resplandecência.
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