A obra-prima de Wes Anderson acaba de chegar à Disney+: um dos filmes mais bonitos da história do cinema Divulgação / HBO Max

A obra-prima de Wes Anderson acaba de chegar à Disney+: um dos filmes mais bonitos da história do cinema

Existe algo de profundamente inquietante na maneira como Wes Anderson articula beleza e colapso em “O Grande Hotel Budapeste”. Não se trata meramente da típica simetria visual ou das cores vivas que quase se podem degustar, mas sim da sutileza com que cada detalhe extravagante do cenário expõe silenciosamente uma Europa cujo esplendor envelhecido mascara fragilidades humanas e históricas muito reais. É nesse cenário, uma república fictícia denominada Zubrowka, suspensa ambiguamente entre a luz dos Alpes e a sombra densa dos Cárpatos, que Anderson oferece mais que um filme — oferece um exercício de memória moldado em ironia fina e nostalgia perigosa. Sua visão cinematográfica é uma provocação à ideia simplista de perfeição estética, revelando como, mesmo na simetria mais rigorosa, há um caos humano inevitável que sempre ameaça emergir à superfície.

Anderson estrutura seu filme como uma narrativa que se dobra sobre si mesma, em camadas intrincadas, lembrando as bonecas russas que escondem outras menores em seu interior. Ao transitar elegantemente entre períodos históricos distintos, partindo do presente e retrocedendo até o auge do hotel nos anos 1930, ele não se limita apenas à precisão técnica: sua estratégia revela uma reflexão aguda sobre o tempo como força inevitável que corrói todas as ilusões de estabilidade. Contudo, essa profundidade potencial raramente é explorada com a seriedade que o contexto histórico mereceria. A ascensão fascista e a iminência da brutalidade da guerra aparecem como ecos distantes, jamais enfrentados frontalmente; permanecem como um pano de fundo inquietante, ainda que convenientemente diluídos pela comicidade ostensiva da trama principal. Anderson sugere, mas evita, a realidade violenta e sombria da Europa pré-guerra, preferindo manter sua narrativa numa distância confortável, o que é simultaneamente seu maior charme e seu principal ponto fraco.

No coração desse universo encontra-se o inconfundível Gustave H., personagem que Ralph Fiennes eleva a um patamar singular dentro da filmografia de Anderson. Gustave é encantadoramente contraditório, sofisticado e grotesco em iguais proporções; a elegância meticulosa com que gerencia o hotel contrasta radicalmente com suas decisões pessoais duvidosas, sobretudo em sua peculiar predileção por idosas abastadas. Ainda que ecoe os anti-heróis carismáticos já retratados pelo diretor em “Os Excêntricos Tenenbaums” ou “A Vida Marinha com Steve Zissou”, Gustave não ganha a densidade psicológica necessária para transcender sua função como figura emblemática de uma decadência cultural que resiste obstinadamente diante da inevitável mudança histórica. Fiennes é brilhante, não há dúvida, mas Anderson parece confiar demasiadamente no carisma imediato do personagem, deixando-o preso em uma superfície elegante, incapaz de mergulhar em águas mais turvas.

Em torno de Gustave gravitam múltiplos personagens secundários, interpretados por um elenco estelar que, apesar de sua qualidade incontestável, permanece subaproveitado. Artistas como Bill Murray, Jeff Goldblum, Willem Dafoe e Saoirse Ronan aparecem como figuras passageiras, que enriquecem visualmente o cenário, mas pouco acrescentam à complexidade emocional da narrativa. Exceção feita talvez ao jovem Zero Moustafa, interpretado por Tony Revolori, que mesmo encaixado no padrão problemático de Anderson — um jovem imigrante excêntrico e subordinado — proporciona um raro ponto de conexão emocional genuína. Sua relação com Gustave sustenta grande parte do núcleo dramático do filme, especialmente ao revelar, de maneira sutil e comovente, as feridas escondidas sob o glamour decadente. Contudo, a profundidade emocional prometida por essa relação acaba diluída no frenesi visual que predomina.

O filme não hesita em surpreender com uma violência inesperada, exibindo detalhes chocantes que parecem destoar do tom predominantemente leve e cômico. Aqui, a violência é apresentada não apenas como efeito estilístico, mas como tentativa de conferir urgência à trama — uma forma estranha e não inteiramente bem-sucedida de Anderson afirmar a seriedade histórica que insiste em evitar. Ao optar por enfatizar o espetáculo e a ação frenética em detrimento de uma reflexão consistente sobre os temas mais espinhosos, Anderson lembra um pouco Quentin Tarantino em “Django Livre”: ambos os diretores se aproximam de períodos históricos carregados de dor e trauma, mas recuam rapidamente, preferindo o conforto de narrativas estilizadas a enfrentar de fato o peso desconfortável da História.

Essa escolha de Anderson revela um conflito latente na maneira como ele aborda a nostalgia. Seu olhar para o passado nunca é inocente, tampouco é puramente crítico; ao invés disso, reside num espaço intermediário, onde a melancolia torna-se quase um ornamento decorativo. Embora o filme ocasionalmente sugira uma consciência do que foi perdido — seja pela ascensão fascista, seja pela transformação do hotel em um ambiente soviético frio e impessoal —, esses vislumbres são tão breves e fugazes que deixam uma sensação agridoce de incompletude. O espectador, assim, termina a experiência com a impressão incômoda de que presenciou algo profundamente significativo, sem, entretanto, poder afirmar exatamente o que seria esse algo.

Ao encerrar sua narrativa, Anderson desperdiça a chance preciosa de mergulhar mais fundo nas ambiguidades históricas e humanas que ele mesmo evoca tão habilmente. Em vez disso, prefere manter-se fiel à sua assinatura estilística, oferecendo ao público uma experiência visualmente impecável e emocionalmente agradável, ainda que superficial. “O Grande Hotel Budapeste” é, portanto, simultaneamente fascinante e frustrante: um espetáculo inesquecível por sua beleza singular, mas também uma dolorosa lembrança de um diretor que parece preso à necessidade compulsiva de entreter, evitando explorar integralmente o potencial perturbador e belo de suas próprias metáforas.

É justamente nessa dualidade que reside o impacto duradouro do filme. Ao mesmo tempo em que nos convida ao deslumbre diante de uma Europa imaginária, cuja decadência é tão bela quanto trágica, o filme também sugere sutilmente que talvez nossa própria admiração por esse mundo perdido seja igualmente superficial e confortável. Ao final, o que fica não é apenas a impressão de uma obra que poderia ter ido além, mas também um incômodo questionamento sobre o modo como nós mesmos encaramos o passado: talvez Anderson esteja menos interessado em explorar as profundezas históricas do que em provocar o espectador a refletir sobre sua própria cumplicidade em romantizar aquilo que nunca existiu. A beleza melancólica que atravessa o filme não seria, afinal, um convite à reflexão sobre a facilidade com que esquecemos as tragédias escondidas sob as aparências perfeitas?

Filme: O Grande Hotel Budapeste
Diretor: Wes Anderson
Ano: 2014
Gênero: Aventura/Comédia/Crime
Avaliação: 10/10 1 1
★★★★★★★★★★