O encontro entre privilégio e revolta, conforto e ameaça, ordem e caos, nunca é casual — ao menos não em “Delicious”, estreia ousada e provocadora da diretora alemã Nele Mueller-Stöfen, realizada em parceria com a Komplizen Film, produtora de referência na Alemanha por seu histórico em títulos como “Toni Erdmann”. Exibido recentemente no Festival de Berlim e já disponível na Netflix, este thriller escapa propositalmente das soluções fantásticas ou extravagantes que têm marcado o recente cinema alemão de gênero, para entregar algo mais perturbador: uma tensão calcada no desconforto íntimo das desigualdades sociais, daquelas que não se resolvem apenas ao apagar das luzes ou ao rolar dos créditos finais. Ao situar sua trama na Provença, região francesa carregada de simbolismos históricos ligados ao luxo burguês e à beleza quase artificial de uma vida intocável, Mueller-Stöfen cria um cenário onde qualquer ruptura soa particularmente violenta.
A diretora não demora a desconstruir esse idílio ao introduzir Teodora, estrangeira enigmática interpretada com uma intensidade desconcertante por Carla Diaz, cujo nome já anuncia discretamente o caráter subversivo que irá desempenhar. O atropelamento que coloca Teodora na trajetória da família alemã composta pelo casal John e Esther e seus filhos adolescentes, Alba e Tom, funciona como pretexto simbólico, uma colisão literal entre mundos distintos. A decisão aparentemente altruísta de cuidar da vítima em casa revela-se rapidamente como o resultado de motivações egoístas, carregadas de um medo difuso que reflete a fragilidade moral da elite representada por John e Esther — brilhantemente vividos com sutileza por Valerie Pachner. À medida que Teodora se instala na rotina familiar sob o papel conveniente de empregada doméstica, as aparências harmoniosas vão cedendo espaço à revelação de ressentimentos profundos e desejos reprimidos, permitindo à trama explorar uma forma sofisticada e perturbadora de violência psicológica e social.
“Delicious” é especialmente contundente na medida em que rejeita a simplicidade de estereótipos ou julgamentos apressados. Cada personagem, por mais facilmente rotulável que pareça inicialmente, carrega ambivalências que enriquecem a reflexão proposta pelo filme. A família alemã não é demonizada, tampouco se apresenta como inocente. Ao contrário, Mueller-Stöfen oferece-lhes humanidade e vulnerabilidade suficientes para que suas fraquezas sejam compreensíveis, mesmo quando questionáveis.
Por outro lado, Teodora e seus aliados também escapam do risco de serem idealizados como simples vítimas ou revolucionários nobres. Suas motivações são legítimas, mas também contaminadas por impulsos dúbios, explorando inteligentemente a linha tênue que separa justiça social e vingança pessoal. Assim, o filme amplia a complexidade da luta de classes ao enfatizar que o confronto não se limita a simples oposições entre ricos e pobres, mas envolve uma intricada disputa ética sobre a validade de meios e fins.
Outro aspecto singular da narrativa reside na inserção de Teodora como personagem espanhola em meio ao contexto francês. Essa escolha não é gratuita nem meramente exótica: sugere uma intervenção externa deliberada, uma metáfora para a inevitabilidade com que as consequências das desigualdades atravessam fronteiras e afetam diretamente aqueles que se julgam imunes, protegidos por nacionalidades ou muros sociais. Ao estabelecer uma personagem estrangeira no epicentro de uma tensão local, a diretora traz à tona uma reflexão poderosa sobre como as estruturas de poder são constantemente desafiadas por forças imprevisíveis e aparentemente frágeis.
A ambição crítica e a riqueza de referências cinematográficas garantem ao filme múltiplas camadas interpretativas. Se há ecos claros de clássicos como “Teorema”, de Pasolini, Mueller-Stöfen vai além da homenagem ao construir uma abordagem contemporânea que dialoga diretamente com sucessos recentes como “Parasita” e “O Menu”, sem jamais parecer uma reprodução superficial. Em vez disso, o filme usa sua própria voz para tratar do ressentimento latente em sociedades polarizadas, insistindo que a distância entre o conforto e a violência é frequentemente mais curta do que se deseja admitir.
Talvez o ponto mais provocador e audacioso de “Delicious” esteja justamente na forma como leva a crítica anticapitalista ao extremo literal. Sem medo de provocar desconforto, o filme realiza uma inversão sinistra da expressão “comer os ricos”, criando uma metáfora crua e visceral que, embora arrisque parecer excessiva para alguns espectadores, fortalece sua mensagem com inegável impacto. Ao evitar atalhos ou simplificações morais, Mueller-Stöfen obriga o público a enfrentar a ambiguidade ética que permeia todo ato de rebeldia — uma estratégia poderosa, pois o que resta após o choque inicial é uma reflexão inquietante sobre a legitimidade de atos extremos quando confrontados com injustiças igualmente extremas.
Ao fim da experiência cinematográfica, longe de oferecer respostas tranquilizadoras ou desfechos moralizantes, o longa deixa uma provocação mais poderosa: quem merece a empatia do espectador quando a justiça e a violência se confundem? Este questionamento incômodo, que se prolonga muito além do filme, demonstra o verdadeiro sucesso artístico de Nele Mueller-Stöfen — não apenas pela competência técnica ou força narrativa que imprime, mas sobretudo pela capacidade de deixar ao espectador a difícil tarefa de decidir o que fazer com os dilemas éticos expostos na tela. Em vez de um mero entretenimento de qualidade ou exercício estético refinado, “Delicious” configura-se como um convite implacável à reflexão, oferecendo ao público não apenas um thriller bem realizado, mas uma oportunidade rara de repensar suas próprias posições diante das desigualdades que, todos sabemos, estão perigosamente próximas da ruptura total.
★★★★★★★★★★