Em “Frida”, Julie Taymor constrói mais do que um retrato biográfico da icônica pintora mexicana Frida Kahlo; a cineasta transforma sua história em uma experiência sensorial e narrativa que transcende convenções do gênero. A obra mergulha na complexidade da artista sem reduzi-la a um arquétipo de sofrimento ou a uma coadjuvante na vida do muralista Diego Rivera. Pelo contrário, Taymor compõe uma protagonista que se impõe com força própria, articulando sua arte e sua dor como elementos inseparáveis de sua identidade.
O longa explora a relação conturbada entre Frida (Salma Hayek) e Rivera (Alfred Molina), não apenas como um casamento marcado por traições e reconciliações, mas como um embate de duas mentes brilhantes, movidas por paixões avassaladoras e convicções artísticas inegociáveis. Hayek oferece uma interpretação visceral, capturando a fisicalidade e a resiliência de Kahlo diante da dor crônica que a acompanhou desde o acidente que a marcou para sempre. Molina dá vida a um Rivera sedutor, talentoso e emocionalmente indomável, compondo um contraponto que reforça a tensão latente em sua dinâmica conjugal.
Mas “Frida” não se limita à esfera pessoal. O filme contextualiza a artista em um período de efervescência política e cultural, ressaltando como sua obra dialoga com a ideologia revolucionária que permeava a primeira metade do século 20. Personagens históricos como Leon Trótski (Geoffrey Rush) e Nelson Rockefeller (Edward Norton) não são meras presenças ilustrativas, mas catalisadores que ajudam a delinear as contradições entre a utopia socialista professada por Rivera e as concessões feitas à elite capitalista. Essa interseção entre arte e política não é apenas um pano de fundo, mas um eixo que potencializa a profundidade da narrativa.
Taymor faz de “Frida” uma extensão da estética da pintora. A cinematografia de Rodrigo Prieto incorpora elementos pictóricos ao filme, transformando as telas de Kahlo em passagens orgânicas entre o real e o imaginário. Em momentos cruciais, o espectador é transportado para dentro das obras, testemunhando a fusão entre vida e arte de forma que não apenas ilustra, mas amplifica o impacto emocional da história. O uso de animações, efeitos práticos e composições inspiradas no surrealismo reforça a singularidade estilística da produção, diferenciando-a das cinebiografias convencionais.
Outro aspecto que dá mais intensidade à essa experiência imersiva é a trilha sonora de Elliot Goldenthal, cuja fusão entre sonoridades tradicionais mexicanas e arranjos contemporâneos rendeu ao filme um Oscar, adicionando camadas sensoriais à jornada de Frida. A caracterização, premiada na categoria de maquiagem, reforça a autenticidade visual, enquanto o roteiro, baseado na biografia de Hayden Herrera, evita transformar Kahlo em uma vítima passiva, optando por evidenciar sua autonomia e suas contradições. Seus relacionamentos, incluindo os casos extraconjugais com homens e mulheres, são abordados sem moralismos, delineando uma mulher que desafiou convenções, mas que também foi refém de suas próprias paixões.
“Frida” é diferente de outras cinebiografias por não apenas contar a trajetória da artista, mas ao traduzi-la em linguagem cinematográfica com ousadia e sensibilidade. Julie Taymor entrega um filme que não se limita à reconstrução factual de uma vida marcante, mas que transforma essa jornada em uma experiência visual, política e emocional que ecoa além da tela. A figura de Kahlo não é um ícone distante, mas uma presença pulsante, cuja arte e existência continuam a desafiar e inspirar.
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