“Aniquilação”, dirigido por Alex Garland, destaca-se como um raro exemplar cinematográfico dentro da atual proliferação do gênero ficção científica, justamente por não se alinhar aos modelos mais recorrentes, inspirados em obras como “2001: Uma Odisseia no Espaço”, “Blade Runner” e “Matrix”. Garland, inspirado não apenas pela sofisticação estética desses clássicos, mas especialmente pela abordagem existencial e inquietante de Andrei Tarkovsky em filmes como “Solaris” e “Stalker”, constrói uma narrativa marcada por uma atmosfera sombria e desafiadora.
A premissa é aparentemente simples: um meteoro atinge um farol e gera uma zona misteriosa chamada “O Brilho”, onde as leis da biologia parecem não mais se aplicar. Entretanto, a trama logo revela camadas mais profundas, abordando questões complexas como autodestruição, identidade e a fragilidade da condição humana diante do desconhecido. Não à toa, a audácia do filme acabou afastando os grandes estúdios — como a Paramount —, que preferiram vendê-lo à Netflix, temendo uma repetição do fracasso comercial sofrido anteriormente pelo igualmente ousado “Mãe!”, de Darren Aronofsky.
A história gira em torno da bióloga Lena (Natalie Portman), cuja vida entra em colapso quando o marido, Kane (Oscar Isaac), reaparece após um ano desaparecido em uma missão secreta dentro de uma zona enigmática e mortal apelidada de “O Brilho”. Kane retorna visivelmente alterado, com um comportamento vazio e perturbador, indicando que algo profundamente perturbador ocorreu durante sua ausência. A partir daí, Lena se vê impelida a integrar uma nova expedição, composta exclusivamente por mulheres — entre elas a Dra. Ventress (Jennifer Jason Leigh), cuja frieza carrega um peso quase filosófico; a instável Anya (Gina Rodriguez), com suas intenções dúbias; e a introvertida Josie (Tessa Thompson) — para desvendar o mistério que envolve o local conhecido como “O Brilho”. Esse ambiente onírico e hostil, onde a natureza sofreu mutações irreversíveis, funciona como uma metáfora poderosa para os temas centrais do filme: a corrupção, a dualidade, e sobretudo a autodestruição.
Garland conduz a narrativa com precisão cirúrgica, alternando temporalidades por meio de flashbacks que, embora por vezes desorientem, servem para aprofundar a tensão psicológica e emocional dos personagens. Ao penetrar na floresta afetada pelo fenômeno do Brilho, a equipe enfrenta ameaças biológicas bizarras — uma fauna e flora geneticamente alteradas por uma radiação que distorce formas e comportamentos naturais, levando a vida ao limite do horror. O diretor, com auxílio notável da fotografia hipnótica de Rob Hardy, transforma essas aberrações biológicas em representações concretas do medo humano mais visceral: o terror de que nosso corpo se torne irreconhecível, uma entidade hostil que conspira contra nós mesmos. Garland ainda reforça a sensação de claustrofobia e inquietude por meio de uma trilha sonora atonal e uma edição rigorosa, especialmente nas cenas mais impactantes, que lembram, em intensidade e sensação de inevitabilidade da morte, clássicos como “O Enigma de Outro Mundo”, de John Carpenter.
Se a jornada das personagens é fascinante, a chegada ao destino talvez não alcance plenamente o mesmo nível de impacto emocional, algo comum em narrativas cujo centro é uma missão em direção ao desconhecido. No entanto, Garland evita cair no vazio das respostas fáceis, mantendo questões abertas o suficiente para que o público continue refletindo muito após o término do filme. Lena e suas companheiras enfrentam não apenas perigos externos, mas o colapso gradual da sanidade, representado por criaturas aberrantes que parecem emergir diretamente do inconsciente coletivo e que funcionam também como projeções visuais da própria condição humana diante da doença, do medo e da morte iminente. A alegoria principal do filme torna-se clara aqui: o “Brilho” é uma metáfora para o câncer, uma doença que corrói por dentro, distorcendo identidades, e, em última instância, ameaçando a própria essência humana.
O resultado é uma obra difícil de classificar e ainda mais difícil de esquecer. Ao contrário dos blockbusters atuais da ficção científica, que apostam sobretudo em efeitos especiais e tramas confortavelmente previsíveis, “Aniquilação” exige do espectador atenção cuidadosa, uma disposição para a introspecção e o desconforto. Garland não faz concessões; ele transforma momentos de horror explícito em reflexões profundas sobre nossa vulnerabilidade diante do desconhecido, sobre a fragilidade de nossa identidade e sobre como nossas emoções e corpos podem nos trair a qualquer instante.
Mesmo com algumas imperfeições estruturais, o filme permanece memorável justamente pela coragem em explorar territórios emocionais e psicológicos que poucos cineastas contemporâneos ousam abordar, consolidando-se, assim, como um dos trabalhos mais ousados e originais dentro da atual safra de ficções científicas. Mais que entretenimento passageiro, “Aniquilação” se impõe como uma experiência cinematográfica perturbadora e profundamente relevante, destinada a permanecer muito tempo nas discussões sobre o gênero e sobre nós mesmos.
★★★★★★★★★★