Existe uma ironia profundamente reveladora no fato de que as certezas mais inquestionáveis da vida — como a morte, a burocracia fiscal e as tarefas domésticas eternamente inacabadas — sirvam exatamente como porta de entrada para uma jornada existencial que dissolve por completo qualquer certeza possível. É nesse paradoxo provocador que Daniel Kwan e Daniel Scheinert (os Daniels) estruturam magistralmente o universo de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, um filme em que o banal se converte, inesperadamente, em uma experiência filosófica de proporções cósmicas.
Evelyn Wang (Michelle Yeoh), aparentemente presa em uma rotina massacrante como dona de lavanderia à beira da falência, vive um cotidiano que a atinge como uma sequência de golpes: conflitos conjugais silenciosos, pressões familiares, e uma auditoria da Receita Federal que paira sobre seu pescoço feito uma lâmina. É nessa asfixia diária que Evelyn mergulha em universos paralelos, onde todas as versões possíveis de si mesma coexistem, num turbilhão de realidades em que o impossível se revela não apenas possível, mas provável.
Desde sua abertura, o filme deixa claro que o espelho que separa o sonho da realidade é mais tênue do que Evelyn imagina. O olhar melancólico de Yeoh, transitando com naturalidade entre humor, exaustão e heroísmo, serve como ponto focal dessa multiplicidade narrativa. Seu casamento desgastado com Waymond (Ke Huy Quan), as expectativas severas de Gong Gong (James Hong), seu pai implacável, e as complexidades da relação com a filha Joy (Stephanie Hsu), cujas escolhas pessoais desafiam os códigos culturais da mãe, poderiam facilmente preencher um drama familiar clássico. No entanto, os Daniels subvertem essa fórmula convencional ao introduzirem abruptamente outra dimensão, na qual Waymond — ou uma versão alternativa dele — vem alertá-la sobre uma ameaça multidimensional iminente, personificada na entidade caótica conhecida como Jobu Tupaki. Aqui, as fronteiras da narrativa explodem em infinitas direções, criando um caleidoscópio vertiginoso e fascinante.
O virtuosismo do filme repousa precisamente nessa capacidade de integrar elementos que, em mãos menos habilidosas, poderiam parecer díspares ou até incompatíveis. Cenas que vão da comédia absurda à ação frenética são pontuadas por momentos de genuína introspecção filosófica, capturados numa edição sofisticada, rápida e incisiva de Paul Rogers, que mantém o espectador simultaneamente intrigado e desorientado. Cada universo visitado por Evelyn tem sua própria lógica estética e narrativa, com homenagens explícitas e sutis ao cinema de gênero, desde a coreografia elegante das batalhas marciais que remetem diretamente ao legado icônico de Yeoh em “O Tigre e o Dragão”, até referências cultuadas como “Matrix” ou dramas existenciais dignos de Wong Kar-Wai. Com movimentos fluídos e enquadramentos amplos, o diretor de fotografia Larkin Seiple transforma o caos multidimensional em poesia visual, celebrando a beleza dos corpos em movimento constante, num balé cinematográfico impressionante.
Michelle Yeoh, em uma das performances mais multifacetadas e expressivas de sua carreira, carrega a narrativa com uma densidade emocional singular. Cada versão alternativa de Evelyn revela camadas novas de uma personagem que representa simultaneamente força e fragilidade, ambição e desencanto, coragem e desespero. Ke Huy Quan, retornando brilhantemente às telas, transforma Waymond em um personagem surpreendentemente profundo, demonstrando o poder silencioso da gentileza e da empatia em contraposição à violência e ao conflito. Stephanie Hsu é um verdadeiro destaque, encarnando a turbulência emocional de Joy, cuja angústia transcende gerações e culmina em uma imagem simbólica brilhantemente surrealista: o “bagel de tudo”, metáfora de um vazio existencial capaz de consumir todos os universos possíveis. Sua trajetória revela a dor latente de expectativas frustradas e o peso do deslocamento cultural e identitário, questões que emergem com força na sociedade contemporânea.
Além das impressionantes sequências de ação e do humor inteligente, o filme toca em algo profundamente sensível: a angústia existencial inerente à vida adulta, especialmente em uma realidade hiperconectada e repleta de distrações constantes. Evelyn não está apenas confrontando uma entidade multidimensional ameaçadora; ela luta diariamente contra o desgaste causado por uma vida permeada de tarefas não realizadas e sonhos adiados. Sua experiência, portanto, transforma-se em uma poderosa metáfora da condição contemporânea: a exaustão que sentimos ao tentarmos corresponder a expectativas impossíveis em um mundo que multiplica, a cada instante, as demandas que pesam sobre nossos ombros.
Nesse contexto, a metáfora do multiverso deixa de ser apenas uma brincadeira conceitual e assume um significado mais profundo e impactante: a vida, afinal, é um interminável confronto com as possibilidades que não escolhemos e com as versões alternativas de nós mesmos que poderíamos ter sido. Cada realidade alternativa torna-se, dessa maneira, uma provocação constante, um espelho desconcertante diante do qual somos obrigados a nos enxergar sem máscaras ou ilusões.
No ápice da narrativa, em vez de oferecer respostas fáceis, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” sugere que o caos não é algo a ser temido ou evitado, mas um fenômeno inevitável e até necessário para nossa existência plena. No meio desse caos, o filme encontra a verdadeira essência do amor familiar, da aceitação e da empatia, que se manifestam não na perfeição impossível, mas nos instantes em que escolhemos reconhecer nossa vulnerabilidade compartilhada.
É essa reflexão pungente que ressoa após os créditos finais: talvez, diante das infinitas possibilidades do universo, nosso maior desafio não seja descobrir qual realidade é a correta, mas aceitar que, no fundo, todas elas coexistem dentro de nós. O filme não encerra com conclusões definitivas, mas sim com uma provocação inesquecível, convidando-nos a abraçar plenamente a complexidade que somos, enquanto navegamos pelas águas turbulentas e fascinantes da própria existência — em toda sua caótica e maravilhosa pluralidade.
★★★★★★★★★★