A ideia de que o horror é sempre ficcional talvez represente o nosso mecanismo mais primário de defesa psicológica, um conforto ilusório que mantemos frente às monstruosidades imaginárias. Contudo, quando o horror surge da banalidade administrativa e da indiferença burocrática do poder público, como ocorreu no trágico caso da cidade inglesa de Corby, somos forçados a confrontar um medo muito mais profundo e inquietante: o reconhecimento de que a realidade consegue superar, em crueldade, até mesmo a fantasia mais perturbadora. A minissérie “Cidade Tóxica”, que dramatiza essa tragédia, lança o espectador exatamente nesse ponto desconfortável, exigindo dele mais do que mero interesse casual, mas um envolvimento emocional e crítico profundo.
No centro da narrativa está um acontecimento que, apesar de real, desafia a nossa capacidade de compreensão ética. Em 1984, a prefeitura de Corby ordenou a demolição da sua siderúrgica desativada, impulsionada pela promessa neoliberal de crescimento econômico rápido. O preço oculto dessa promessa materializou-se na forma de resíduos industriais altamente tóxicos, transportados sem qualquer critério pelas ruas da cidade. Invisível à época, o impacto dessa decisão surgiu lentamente, com deformidades e mortes de recém-nascidos, vítimas diretas da negligência criminosa das autoridades locais. Em quatro episódios construídos com equilíbrio notável entre denúncia política e sensibilidade emocional, “Cidade Tóxica”, criada pelos roteiristas Jack Thorne e Amy Trigg e dirigida por Minkie Spiro, não apenas revela a extensão dessa tragédia, mas desvenda cuidadosamente as engrenagens perversas que permitiram sua ocorrência.
É precisamente nessa combinação entre a crueldade cotidiana e a resistência humana que o drama se distingue. As atrizes Jodie Whittaker e Aimee Lou Wood interpretam, com rara intensidade, Susan McIntyre e Tracey Taylor, mães cujas vidas são devastadas não por acaso ou destino, mas pelas decisões conscientemente tomadas por pessoas aparentemente normais. Susan, interpretada por Whittaker com um misto impecável de dureza e vulnerabilidade, vê seu filho Connor nascer com a mão deformada. Já Tracey vive a experiência devastadora de perder sua filha Shelby Ann, vítima de múltiplas malformações fatais. Juntas, essas mulheres encarnam não apenas a dor pessoal, mas uma luta coletiva por justiça, travada contra uma burocracia municipal cujo líder, Roy Thomas — em uma interpretação contundente e sombria de Brendan Coyle — oscila entre o grotesco e o assustadoramente realista.
A qualidade interpretativa e a maturidade narrativa conferem à minissérie um poder incomum. Em vez de exageros retóricos ou dramáticos comuns às produções americanas, a série aposta na contenção tipicamente britânica, uma decisão que maximiza o impacto emocional. Joe Dempsie, que interpreta Derek Mahon, caminhoneiro cuja tarefa diária era levar os resíduos venenosos pela cidade, entrega uma atuação marcante exatamente por sua sutileza, revelando que o verdadeiro horror se encontra menos na crueldade explícita e mais na indiferença cotidiana, naquele compromisso rotineiro que destrói vidas lentamente, sem que ninguém pare para questionar.
Embora alguns críticos apontem para excessos pontuais no roteiro ou na direção — como diálogos em tom elevado demais ou imagens repetidamente explícitas das toxinas espalhando-se —, esses detalhes não diminuem o mérito central da série: seu profundo engajamento com questões sociais de relevância global. Assim como o jornalista Graham Hind, do jornal britânico “Sunday Times”, fez ao denunciar publicamente o escândalo de Corby e catalisar o processo judicial que só se desenrolou plenamente em 2009, a minissérie traz à luz algo que muitos preferem ignorar: a vulnerabilidade humana frente ao interesse econômico e político, uma realidade que ultrapassa as fronteiras britânicas e reverbera tragicamente pelo mundo afora.
Nesse sentido, “Cidade Tóxica” não apenas emociona e provoca; ela nos confronta de forma implacável com uma reflexão crucial sobre a natureza do sofrimento coletivo e a facilidade perturbadora com que atrocidades ambientais e sociais continuam ocorrendo, camufladas pela burocracia administrativa e pela banalidade do cotidiano. Se há algo realmente assustador nessa história, não é apenas o fato de as crianças terem sofrido as consequências devastadoras da negligência municipal, mas a percepção aterradora de que casos semelhantes continuam acontecendo — desde o descaso ambiental recente do Reino Unido até regiões ainda mais vulneráveis pelo mundo, onde a morte lenta pela contaminação tóxica é encarada como parte integrante do custo-benefício econômico.
A força maior de uma narrativa como essa reside, portanto, em sua capacidade rara de transformar espectadores passivos em testemunhas atentas, convocando-os para um despertar urgente. Não é possível assistir impassivelmente à luta dessas mulheres sem pensar na própria responsabilidade, sem perceber que o drama silencioso e persistente de Corby está longe de ser exceção. “Cidade Tóxica” realiza algo verdadeiramente excepcional ao nos retirar do conforto ilusório das ficções de horror, mostrando-nos que a monstruosidade verdadeira está enraizada na aparente normalidade do nosso sistema político e econômico.
Ao término dos quatro episódios, não há celebração ou alívio. A indenização milionária recebida pelas famílias afetadas em 2009 é menos uma vitória e mais um lembrete doloroso de quanto custam nossas negligências sociais. O que permanece após o último episódio não é o fechamento reconfortante típico das narrativas convencionais, mas uma pergunta inquietante, que ultrapassa as fronteiras da própria série: quantas Corbys ainda existirão ao nosso redor antes que finalmente decidamos agir?
É nesse ponto que reside a sofisticação maior e mais perturbadora de “Cidade Tóxica”. Ela não nos oferece respostas prontas, nem conforto narrativo — em vez disso, deixa no ar a angústia necessária para que a reflexão se transforme, inevitavelmente, em ação concreta. Afinal, se o horror real é aquele que não podemos desligar ao fim da noite, talvez esteja na hora de entender que a próxima história trágica pode ser a nossa própria — uma história ainda não contada, mas cuja ameaça paira silenciosamente ao nosso redor, aguardando apenas a nossa indiferença para tornar-se realidade.
Série: Cidade Tóxica
Criador: Jack Thorne
Ano: 2025
Gêneros: Drama
Nota: 9/10